segunda-feira, 8 de junho de 2020

Literatura: "Serpentário" e "Na Contramão da Liberdade - A Guinada Autoritária Nas Democracias Contemporâneas"


Réveillon de 1999, litoral paulista. Quatro amigos adolescentes caminham a esmo e conversam sobre banalidades e problemas pessoais enquanto implicam entre si e tentam passar o maior tempo possível fora de casa. Para destruir a normalidade desses dias embarcam para uma ilha próxima onde uma experiência extremamente traumática os aguarda, uma experiência que marca a vida de todos. Quase 20 depois essas marcas ainda estão presentes e provocaram estragos e mais estragos durante o tempo. Tudo isso se reflete diretamente quando eles se encontram novamente no mesmo litoral, no entanto com as vidas totalmente transformadas tanto em aspectos físicos quanto emocionais. Esse é o enredo geral do livro mais recente do escritor Felipe Castilho chamado “Serpentário” que foi publicado pela editora Intrínseca no segundo semestre de 2019 com 368 páginas. O autor do ótimo “Ordem Vermelha: Filhos da Degradação” envereda aqui pelo suspense com doses de terror psicológico e adiciona por cima uma camada de críticas comportamentais e sociais, principalmente no que concerne ao relacionamento com um dos quatro amigos. Além disso, insere várias e várias referências a cultura pop em geral, referências até em excesso, o que acaba sendo desnecessário em várias passagens do texto. A trama em si é interessante ao envolver dramas pessoais com o sobrenatural e um mistério ao fundo, todavia o desenvolvimento dessa trama é prejudicado em vários pontos e se perde um pouco do meio para o final. Isso deixa “Serpentário” como uma leitura funcional para passar o tempo, mas um livro apenas razoável.

Nota: 6,0

Leia um trecho no site da editora:
https://www.intrinseca.com.br/upload/livros/1%C2%BACAP_Serpentario.pdf 


Como chegamos até aqui? Como a democracia em grande parte do mundo passou a sofrer ataques constantes colocando em risco o sistema e até mesmo o destruindo em alguns casos? Como que ideias estapafúrdias, mentiras em larga escala e figuras autoritárias influenciam tanto no mundo em que vivemos? É isso que o escritor e professor de história Timothy Snyder (do ótimo “Sobre a Tirania”) objetiva responder em “Na Contramão da Liberdade – A Guinada Autoritária Nas Democracias Contemporâneas’’, publicado aqui no Brasil em 2019 pela Companhia das Letras, 432 páginas e tradução de Berilo Vargas. Baseado em vasta pesquisa o autor divide o trabalho em seis partes que cobrem os anos de 2011 a 2016 indo da volta do pensamento totalitário com mais relevância no mundo até a eleição de Donald Trump para presidente dos USA, passando pelos protestos na Ucrânia e posterior invasão russa em 2014 e pelo continente europeu em geral, com ênfase no Brexit no Reino Unido. Snyder versa de modo hábil em como o uso de mentiras, manipulação de mídia, robôs em redes sociais e a infestação de fake news bizarras devastam países. Muitas das táticas e procedimentos que estão no livro vemos com frequência em nosso próprio solo dia a dia nos últimos anos e cada vez mais. Na opinião do autor o mundo está em marcha firme rumo ao abismo do autoritarismo, contudo ao mesmo tempo indica caminhos para que isso seja interrompido caso haja combate nas causas e aprenda-se com os erros do passado.

Nota: 8,5

Leia um trecho no site da editora: 

domingo, 7 de junho de 2020

Literatura: "Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida" e "Filhos de Sangue e Osso"


Em 416 páginas, o crítico musical e repórter Jotabê Medeiros (que em 2017 publicou o ótimo “Belchior: Apenas Um Rapaz Latino-Americano”) narra a vida do baiano Raul Seixas, um artista de imensurável talento que ainda hoje é cultuado por uma legião de fãs em todo o país apesar de ter falecido há mais de 30 anos, mais precisamente em 21 de agosto de 1989. “Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida” da Todavia Livros publicado em 2019 é uma obra para entender um pouco mais da magia, da loucura e dos processos artísticos de um músico de extensão nacional que gravou clássicos e mais clássicos em seus discos. Como uma biografia deve verdadeiramente ser passa longe de somente afagar o biografado e procura mostrar Raul com todos os defeitos que tinha, além de tocar em pontos bem sensíveis e polêmicas que geram discussão mesmo nos tempos atuais como a prisão do escritor Paulo Coelho pela ditadura (eram parceiros na época) e as apropriações de músicas estrangeiras como base para as próprias composições. Entre o genial, o místico e o rebelde, Raul carregava dentro de si alguns demônios e vícios que o fizeram sucumbir cedo demais, contudo não sem antes tatuar versos e acordes nos corações de milhares. Como diz um trecho do livro: “agregador e ao mesmo tempo solitário, transitou por variados mundos criativos, selecionando de cada um deles as ferramentas necessárias para compor o seu próprio universo”. Raul era isso mesmo, um carpinteiro. Um carpinteiro do universo.

Nota: 8,0


“Filhos de Sangue e Osso” (Children of Blood and Bone) é o primeiro livro da escritora nigeriana-americana Tomi Adeyemi que após se graduar em literatura inglesa em Harvard veio para Salvador estudar sobre mitologia, religião e cultura africana, o que influenciou na criação desse trabalho. Publicado nos USA em 2018 ganhou edição nacional no mesmo ano pela editora Rocco com 560 páginas e tradução de Petê Rissatti. É o primeiro da trilogia “O Legado de Orïsha” (o segundo já saiu lá fora, mas não aqui) e está sendo adaptado para o cinema. Direcionado para o público jovem adulto é daquelas obras que ultrapassam as fronteiras que lhe são arregimentadas e alcançam leitores de diversas esferas. “Filhos de Sangue e Osso” é na essência uma fantasia que usa a mitologia iorubá e os orixás como condutores e no seu cerne aborda temas como opressão, preconceito, racismo, abuso de poder, ancestralidade e a coragem de lutar para mudar as coisas de lugar. Temas que são tratados com uma força assombrosa para uma estreia. A jornada de Zélie, Amari e Tzain para tornar o reino em que vivem um lugar mais justo para todas as raças, credos e tipos, brigando com o coração na ponta da espada, do machado e do bastão para remover um tirano do trono é daquelas que acalenta a alma e se torna ainda mais impactante depois que se lê o texto no final que correlaciona a obra com a realidade dura e cruel dos tempos em que vivemos.

Nota: 9,0

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Quadrinhos: "Dias Estranhos", "Mondo Urbano 10 Anos", "Salseirada" e "Três Buracos"


“Dias Estranhos” é uma saga independente de quadrinhos que teve a primeira edição publicada na primavera de 2016. A segunda saiu em 2017 e a terceira no ano passado, fechando assim o primeiro arco da história. O roteiro de Marcus Leopoldino conta a história de Jean, um cara atormentado por pesadelos incomuns que se vê dentro de uma trama sobrenatural que transita entre a vida real, a magia e a alucinação. A arte de Diego Porto é bem fora do usual e isso além de respaldar o roteiro consegue ir além e brilhar isoladamente devido em boa parcela de culpa as cores vibrantes e lisérgicas de Gabriel Calfa. “Dias Estranhos” foi o projeto inicial da Risco HQ’s Independentes que já publicou outras histórias expandindo esse universo. É um trabalho repleto de qualidades e deixa a expectativa para o que virá na jornada de Jean e seus amigos Luana e César.

Nota: 7,0

Instagram dos autores e da editora:


Entre 2008 e 2009 os amigos Mateus Santolouco, Eduardo Medeiros e Rafael Albuquerque criaram uma história que tinha o rock como ponto central das diversas tramas que convergiam entre si durante as páginas, tramas de descoberta, romances, amizade e... coisas mais estranhas. Lançado como zine reverberou bastante e ficou como um marco positivo na carreira dos autores que após isso traçaram caminhos sólidos nos quadrinhos sem deixar a amizade de lado. No final do ano passado a editora Mino publicou uma galante edição comemorativa para os 10 anos de “Mondo Urbano” com 136 páginas, capa dura e extras bacanudos como making of e entrevistas. O trabalho ainda esbanja vitalidade e energia juvenil, aquela força que a juventude tem o poder de imprimir as coisas. Mesmo que uma ou outra coisa hoje tenha envelhecido um pouco mal e já não encaixe mais tão bem, a história ainda tem méritos e vigor.

Nota: 7,5

Instagram dos autores e da editora:


Salseirada é uma chuva potente e ligeira, além de servir como sinônimo de conflito e briga. É também o nome do álbum que o ilustrador e quadrinista Al Stefano publicou em 2019 com 120 páginas pela Zapata Edições e apoio do PROAC-SP. O trabalho é um belo realismo mágico ambientado no coração do sertão nordestino. Os irmãos Salú e Zabé encontram ao acaso uma rabeca mágica que possui o poder de fazer chover. Os personagens são inspirados em grandes artistas pernambucanos já falecidos: Mestre Salú e Zabé da Loca. Enquanto os dois com a ajuda de Mutum – o outro integrante do trio musical – saem por lugares devastados pela seca tocando e dando vida e esperança aos moradores viram alvo de um poderoso coronel que busca o instrumento para utilizar em fins nada nobres. Unindo aventura, folclore, humor e crítica social, o autor faz em “Salseirada” um trabalho lírico e empolgante.

Nota: 8,5

Instagram do autor e da editora:


Poucos artistas nacionais hoje são tão relevantes como o paraibano Shiko que nos últimos anos despeja grande obra atrás de grande obra, isso sem contar a construção de posters, murais, telas e afins. Seu trabalho mais recente é “Três Buracos”, publicado em 2019 pela editora Mino com capa dura e 128 páginas onde apresenta novamente pleno domínio do ofício que exerce. Com arte de alto nível configurada de modo distinto para cada momento da história, roteiro bem construído e amarrado sem obviedades apresenta uma crítica social pulsando forte ao fundo. Dividido em três partes conta a história de Tânia, sua companheira Cleonice e seu irmão Canhoto que em uma cidade quase fantasma localizada no sertão do nordeste procuram uma maneira de ajustar a vida de vez no meio de obsessões, desconfianças e uma dose quase invisível de esperança escondida. Outro imenso acerto da parceira entre o autor e a editora.

Nota: 9,0

Instagram do autor e da editora: