quinta-feira, 30 de abril de 2020

Literatura: "Mars Club" e "Ida Um Romance"



“Mars Club” (The Mars Room) é o quarto livro da escritora americana Rachel Kushner (autora de “Os Lança-Chamas”) e saiu aqui pela Todavia Livros em 2019 com 344 páginas e tradução do Rogério W. Galindo. A protagonista do romance é Romy Leslie Hall, condenada a prisão perpétua que é apresentada ao leitor em 2003 enquanto se encaminha para cumprir a pena dentro de um ônibus com outras detentas. Aos poucos é narrado como ela chegou até esse ponto, como que a vida desaguou para isso. Ao mesmo tempo em que narra os infortúnios da protagonista, a autora insere personagens coadjuvantes e ao contar um pouco das suas histórias engrandece a trama, pois são criadas figuras fascinantes que trazem junto histórias fortes em igual medida, mas com nuances gerais diferentes. Foca não somente na sobrevivência dentro do sistema carcerário, como também nas dúvidas, (falsas) esperanças e arrependimentos de cada uma. O tom utilizado ora se concentra em um drama de contornos mais pesados, ora explora um humor ácido e cruel enquanto discute pontos importantes como machismo, misoginia, racismo e questões de gênero. Romy Leslie Hall é uma personagem forte, que desde cedo sofreu muito mais do que qualquer um deveria e sempre seguiu em frente. O ato que lhe levou para a cadeia é o estopim de uma situação provocada justamente pelas decisões de uma vida sem glamour e alegrias, além de um filho e momentos bem ocasionais de felicidade. Repleto de frases e tiradas interessantes é uma leitura bem recomendável.

Nota: 7,5



Gertrude Stein nasceu no estado da Pensilvânia nos Estados Unidos em 1874. Em 1903 mudou-se para Paris e um tempo depois conheceu Alice B. Toklas que seria sua companheira até o falecimento em 1946. Virou um dos símbolos da “geração perdida”, um grupo de artistas e escritores que durante esse período buscou refúgio na capital francesa para extravasar suas manifestações, discussões e criatividade. Ela recebia em casa nomes como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e Pablo Picasso, com os quais nutria relação próxima. Dona de um estilo experimental de escrita - ainda mais se considerarmos a época em que viveu - escreveu dezenas de livros e ficou famosa. Um desses livros ganhou edição nacional no final do ano passado pela Ponto Edita, editora independente de São Paulo. “Ida, um Romance” (Ida A Novel, no original de 1941) tem tradução de Luís Protásio e edição de Mauricio Tamboni com 224 páginas e um formato extremamente original que apresenta um trabalho gráfico primoroso tanto nas cores, letras e design, como no cuidado com a inserção de vários textos contextualizando e dissertando sobre a obra. Obra que trata da história de Ida, uma história sobre identidade e liberdade, que tem a vida real cruzando a cada esquina com a fantasia, o cotidiano invadido por pílulas de alucinação e certezas flertando com devaneios na busca por ser quem se deseja realmente ser. É um livro magnífico, para ser lido com calma e se possível em voz alta saboreando cada palavra, cada frase, cada colocação.

Nota: 10,0

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Literatura: "A Intuicionista" e "Uma Mulher No Escuro"

 

Colson Whitehead ganhou o Prêmio Pulitzer de 2017 e foi finalista do Man Boooker Price com o livro “Underground Railroad – Os Caminhos Para a Liberdade” que foi publicado aqui pela Harper Collins Brasil. A mesma editora no ano seguinte colocou no mercado uma edição com o primeiro romance do autor, lançado originalmente em 1999 nos USA, chamado “A Intuicionista” (The Intuitionist). Com 320 páginas e tradução de Caroline Chang esse debute é ambientando em uma cidade fictícia (mas não tanto assim) que mistura modernismos estruturais com políticas sociais e comportamentais conservadoras com racismo e misoginia bem entranhados. A protagonista é Lila Mae Watson, uma das raras inspetoras negras do Departamento de Inspeção de Elevadores, um órgão forte que além da importância tem grande poder de barganha junto ao governo. Quando um elevador de um prédio chique despenca logo após uma verificação em que nada de errado foi atestado, Lila Mae se vê no meio de uma trama intricada e complexa com política, ego, interesses próprios e corrupção dos envolvidos. A leitura de “A Intuicionista” é um pouco travada, pois o texto se preocupa de modo demasiado em exibir conceitos e técnicas do cenário que usa como ambientação, além de contrapor as teorias dos lados envolvidos na briga por uma grande revelação que mudará tudo. Não possui o brilho do premiado livro já citado, mas já carrega em seu corpo as características que seriam exploradas de modo mais luminoso anos depois como a crítica social tendo o racismo como principal alvo.

Nota: 5,0



Em 31 de maio de 1998 uma criança de quatro anos teve toda a família assassinada dentro da própria casa, sendo que como única sobrevivente – por motivos óbvios – cresceu de maneira angustiada e 20 anos depois trabalha como atendente em um café, mora sozinha em lugar não muito sadio da cidade maravilhosa, passa por sessões de terapia com frequência e foge de qualquer tipo de contato pessoal um pouquinho mais intenso seja por medo, por raiva ou por falta de confiança. Esse é o mote de “Uma Mulher no Escuro” do escritor carioca Raphael Montes que completa 30 anos em 2020 e já tem uma lista bem interessante de obras na carreira, como o ótimo “Jantar Secreto” de 2016. Com publicação da Companhia das Letras em 2019 com 256 páginas esse novo suspense do autor possui o ritmo ditado em um thriller psicológico apreensivo onde a protagonista é arremessada dentro de um túnel escuro repleto de segredos, mentiras e mais violência. O grande destaque é a personagem principal, Victoria Bravo, que a duras penas tenta se preservar com sanidade para encarar os desafios da vida depois de ter passado por uma provação tão gigantesca. Quando parece que as coisas estão melhorando pelo menos um mínimo que seja se vê confrontada novamente com o pavor e paralelamente com sentimentos de paixão e desejo que desconhecia até então, o que não a impede de ir definitivamente de encontro ao perigo para colocar as coisas enterradas no passado de uma vez por todas.

Nota: 7,0



domingo, 12 de abril de 2020

Quadrinhos: "Sangue No Olho", "Horo: A Floresta Dos Esquecidos", "Clean Break" e "O Ditador Frankenstein e Outras Histórias de Terror, Tortura e Milicos"


A editora Draco tem o (ótimo) costume de colocar no mercado coletâneas de quadrinhos com histórias curtas definidas por tema específico o que rende quase sempre um resultado bem convincente. “Sangue No Olho” fica dentro desse quadro de maioria. Publicada no final de 2019 com 184 páginas e organizado pelo Raphael Fernandes (que também assina uma das dez histórias) apresenta o faroeste como inspiração, contudo sem se prender necessariamente a isso e dando liberdade aos autores para localizarem os enredos em diferentes épocas e lugares, como também partir para visões mais amplas. São casos de vinganças, de acertos de contas e principalmente de sobrevivência e resistência contra opressores de qualquer estirpe. Todas as histórias se mantêm mais ou menos no mesmo nível, porém merecem maior destaque “Sangue” do Gustavo Whiters e Weslley Marques, “Augusta” da Thaïs Kisuki e Paloma Diniz e “A Retomada” de Caio H. Amaro e Má Matiazi.

Nota: 7,0

Instagram da editora: https://www.instagram.com/editoradraco 

O paulista Fábio Coala possui a rara maestria de dispor mensagens sobre perseverança, superação, compaixão, bondade e coragem no meio de histórias simples nas suas essências e sem ser enfadonho ou pretensioso ao fazer isso. Com “Horo: A Floresta Dos Esquecidos” isso não é diferente. Publicado de maneira independente via financiamento coletivo em 2019 com 128 páginas (e dessa vez em cores) apresenta uma trama anterior ao primeiro álbum do personagem (“Horo – O Castelo da Neblina” de 2016) que narrava a busca por respostas e pelo próprio caminho. Os temas que são tão caros ao autor continuam presentes nesse trabalho mais recente. Em tempos em que notícias ruins não param de chegar e deixam a mente recheada de preocupações e de medo, é um alento e tanto ler e ver o pequeno Horo encarando tudo e todos de coração aberto para salvar a quem ama e defender aquilo que acredita.

Nota: 7,0

Instagram do autor: https://www.instagram.com/mentirinhasdocoala 

“Clean Break” levou dois anos de produção e aqui vale aquele velho clichê: a espera valeu a pena. O trabalho do Felipe Nunes nessa hq é prazeroso, divertido, crítico e ácido, algo bem diferente do tom de obras anteriores como “Klaus” e “Dodô”. Depois de um financiamento coletivo o projeto foi endossado pela Balão Editorial por onde foi publicado em 2019 com 240 páginas. É uma ficção científica com enredo policial que tem ação, drama, lisergia e nonsense contra uma cruzada moral não tão distante dos nossos dias, mas levada a pontos extremos.  A dupla de agentes da lei Silas e Alberico que já carrega os próprios dramas e está inserido em um mundo cada dia mais diferente recebe o ingresso da jovem Tarsila que também possui bagagem nas costas. Com uma arte que se destaca (e dá para imaginar como ficaria em cores), “Clean Break” é definitivamente uma viagem.

Nota: 8,5

Instagram do autor: https://www.instagram.com/nunes_nunes 


“O Ditador Frankenstein e Outras Histórias de Terror, Tortura e Milicos” é um trabalho daqueles que podemos tranquilamente e sem receio algum chamar de “necessário”. Além de registrar para novas gerações uma pequena parte da produção e da arte do grande Julio Shimamoto que completou 80 anos em 2019, usa como pano de fundo em várias das 12 histórias que compõem a antologia uma fase extremamente tenebrosa do nosso país que não deve ser esquecida jamais sob nenhuma hipótese. Produzidas em sua maioria entre os anos de 1978 e 1982 quando a ditadura militar ainda assolava o país, mostra histórias de terror e violência com cunho político e social com o traço hábil do mestre Shima e roteiros de Luiz Antonio Aguiar, Basílio de Almeida, Nani, Reinaldo, Luscar e Maria Emilia, além do próprio artista em contos mais gerais de terror. Produção impecável da M Marte Produções com 220 páginas.

Nota: 9,5




quarta-feira, 1 de abril de 2020

Quadrinhos: "Doce Jazz", "Café Espacial #17", "Love Kills" e "Space Dumplins"


Entre setembro de 2011 e março de 2012 Mylle Silva fez um intercâmbio de estudos no Japão, uma terra totalmente diferente, com outros costumes e outro idioma. Nesses seis meses precisou superar alguns medos enquanto tentava achar um caminho que se sentisse confortável para seguir em frente. É essa experiência que serve como base para “Doce Jazz”, publicação independente de 2019 com 96 páginas e arte da Melissa Garabeli (de “Saudade”). Para suplantar os obstáculos dessa empreitada, a autora achou refúgio e conforto em uma banda iniciante de jazz que passou a integrar e construir laços mais fortes. É uma obra que fala sobre o poder da música como força para superar dificuldades, apaziguar a alma e chutar a solidão para bem longe enquanto a vida não entra no eixo. É um trabalho bem bonito, para ser apreciado com calma e se possível com um som rolando suave ao fundo.

Nota: 7,0

Instagram da Mylle Silva: https://www.instagram.com/myllesilva
Instagram da Melissa Garabeli: https://www.instagram.com/melissa_garabeli


O Café Espacial é um selo editorial independente que desde 2007 tem lançado um bocado de coisa legal entre quadrinhos, literatura e coisas mais. O carro-chefe, por assim dizer, é uma coletânea de histórias da nona arte que em 2019 chegou a edição de número 17 com participação de nomes como Aline Zouvi, Luiza Nasser, Sergio Chaves, André Diniz, Carol Ito, Germana Viana, Laudo Ferreira e muitos outros. Ouso dizer que essa é a melhor edição de todas (o que não é uma tarefa fácil, ressalte-se), pois está perfeitamente alinhada aos nossos dias e retrata o sentimento de muitos nos anos mais recentes. Seja na história que tem a eleição do atual presidente como cenário, na que trata sobre o patriotismo fuleiro da nossa nação, na ótima “Filhas do Campo” ou na triste “Ninho Vazio” temos uma edição recheada de primor tanto nos textos quanto na arte. Coisa muito fina.

Nota: 7,5



Helena é uma vampira que mora sozinha, praticamente sem amigos e sem qualquer nível de sociabilidade além do imprescindível e necessário para a alimentação. Em uma noite como qualquer outra é surpreendida pelo ataque de outros vampiros sem explicação lógica inicial. Tentando sobreviver e entender o que está acontecendo, além de lidar com a entrada de Marcus, um humano que cruzou seu caminho, Helena parte entre socos e sopapos para tirar a limpo o que acontece. Assim é “Love Kills” do Danilo Beyruth que a Darkside Books lançou no final de 2019 com 248 páginas, capa dura e uma edição muito zelosa. Com ritmo acelerado, o autor de “Bando De Dois”, “Necronauta” e “Samurai Shirô”, conta uma história de vampiros com várias referências a trabalhos clássicos do tema no cinema e literatura. Com uma arte sempre excepcional e que descarta maiores comentários elabora mais uma obra extremamente bacanuda na carreira.

Nota: 7,5



“Space Dumplins” do Craig Thompson é bem diferente de “Retalhos” ou “Habibi” e apresenta uma leitura leve e divertida, ainda que a arte dialogue com essas obras em dado momento. É uma ficção científica com humor visual e de texto focada na família e amizade, onde os humanos moram no espaço e convivem com centenas de raças. A parte principal da trama consiste na busca da adolescente Violeta Marlocke para achar o pai que sumiu. Com a ajuda de dois amigos com personalidades muito distintas, cria-se uma aventura clássica que ao fundo discute política, luta de classes e ecologia. Com tradução do Érico Assis e 320 páginas foi publicada esse ano pelo selo Quadrinhos na Cia. e conta com as cores magistrais de Dave Stewart, o que dá uma nova nuance a arte do autor. Totalmente indicado para espantar (nem que seja um pouco) as preocupações dos nossos dias atuais.

Nota: 8,5