segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Literatura: "Serotonina" e "Economia Donut"


No ótimo “Submissão” de 2015 o escritor francês Michel Houellebecq abordava política, religião e costumes com um viés propositadamente conservador que servia para impactar o leitor e criar discussões e polêmicas sobre o que espelhava no texto. Em “Serotonina” (Sérotonine) de 2019 que a editora Alfaguara publica aqui com 239 páginas e tradução conjunta de Ari Roitman e Paulina Wacht ele mergulha na depressão e nas consequências provocadas pelos remédios, sem deixar de aludir sobre alguns assuntos recorrentes nas suas obras anteriores e adotando a mesma tática de provocar o maior espanto possível para causar controvérsia e, lógico, repercussão. O protagonista é Florent-Claude Labrouste de 46 anos que é um ser humano que beira o desprezível, embora aqui e ali alguma boa vontade apareça embaixo do niilismo que carrega. Tomando um remédio para a depressão que ajuda, mas em contrapartida causa impotência e falta de libido, joga tudo para o alto (emprego desestimulante, esposa que lhe trai de várias formas, convívio social) e resolve viver dentro de um hotel com o resto do dinheiro que tem de uma herança enquanto visita um velho amigo de escola que virou fazendeiro e ex-namoradas/mulheres em uma espiral de antipatia, confrontos e tendências doentias. No que concerne ao objetivo específico de provocar, ele foi atingido sabiamente já que o livro (novamente) causou estardalhaço na França, todavia não pode se dizer isso do ponto de vista da qualidade da obra que peca em vários aspectos, principalmente na repetição de formatos e na forçada excessiva de mão.

Nota: 5,0

Leia um trecho aqui:


Uma outra economia é possível? Uma que consiga aliar o crescimento econômico com questões ambientais, sociais, comportamentais e igualitárias, sem esgotar os recursos do planeta e diminuindo as desigualdades de toda e qualquer estirpe? Para a britânica Kate Raworth a resposta é sim, mesmo que seja um processo bem complicado. Além de economista, a autora é professora e pesquisadora da universidade de Oxford com grande experiência em outras instituições. Em “Economia Donut” (Doughnut Economics) que a editora Zahar publicou no país esse ano com 368 páginas e tradução de George Schlesinger ela propõe um modelo econômico diferente que venha a substituir o que guia a humanidade nos últimos séculos e se tornou além de obsoleto, bem prejudicial. Para que esse modelo tivesse como ser visualizado ela criou um gráfico que parece com a famosa rosquinha e daí vem o nome. O livro propõe ideias e discussões que buscam quebrar essas teorias há muito estabelecidas para gerar um pensamento econômico que seja repassado desde já para a nova geração a fim de que seja possível definir metas de longo prazo para a humanidade como um todo, humanidade que hoje está na casa dos 7 bilhões de habitantes e tende a bater 10 bilhões em 2050. Desaprender o que sabemos e reaprender novamente por outro viés é necessário na visão da autora. O resultado é um trabalho expressivo que carrega a virtude de poder ser entendido mesmo por quem não tem muita sapiência na área. Um dos livros do ano, sem dúvida.

Nota: 9,0

Leia um trecho aqui:
https://zahar.com.br/sites/default/files/arquivos/trecho_-_economia_donut.pdf

Eis o donut:

domingo, 13 de outubro de 2019

Literatura: "Fogo & Sangue - Volume 1" e "Hibisco Roxo"


Quando Aegon, o Conquistador chegou em Westeros com seus dragões a tiracolo toda a história do(s) reino(s) mudou drasticamente. Em “Fogo & Sangue – Volume 1” (Fire And Blood), George R. R. Martin conta um pouco mais sobre os 300 anos de reinado dos Targaryen até que a rebelião comandada por Robert Baratheon matasse Aerys II, o Rei Louco e desse início a saga que fez estrondoso sucesso tanto nos livros quanto na televisão. Lançado pela editora Suma no final do ano passado com 598 páginas e tradução de Regiane Winarski e Leonardo Alves, o livro - que apresenta partes anteriormente publicadas em 2013, 2014 e 2017 em outras obras - é narrado bem depois que os fatos aconteceram e são baseados em relatos de um septão, um meistre e um bobo da corte (que rende as melhores passagens). “Fogo & Sangue” apresenta em farta quantia coisas que o autor explorou de forma competente em “Game Of Thrones”, tais como mentiras, traições, intrigas, guerras, religião e sexo, mas aqui com um pouco de humor. O livro amarra algumas coisas, explica outras e até levanta alguns novos questionamentos, no entanto não ultrapassa aquilo que realmente é: um subproduto voltado para fãs e devotos da história “original” que serve para suprir a ausência do próximo livro que não chega nunca. Em determinadas pedaços a leitura fica tão arrastada e desenxabida que é difícil seguir adiante. O ponto alto acaba sendo as ilustrações de Doug Wheatley (Superman, Hulk, Conan) que acrescentam bastante ao texto.

Nota: 4,0

Leia um trecho aqui:
https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/28000580.pdf 


“Hibisco Roxo” de 2003 é o primeiro livro da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie que depois se tornaria uma das relevantes autoras da atualidade com livros como “Americanah” e famosas palestras. “Hibisco Roxo” (Purple Hibiscus) ganhou edição nacional em 2011 pela Companhia das Letras que constantemente faz reimpressões como agora em 2019 com tradução de Julia Romeu e 328 páginas. Nele somos apresentados a jovem Kambili e a um país que está permanentemente na corda bamba, na luta entre manter tradições e crenças e/ou se adequar as mudanças trazidas pela colonização branca, enquanto os processos políticos e sociais são instáveis e geram corrosivos efeitos. O pai de Kambili é um empresário de sucesso que ao mesmo tempo em que ajuda bastante a comunidade e pessoas estranhas gere com mão de ferro a família, formada além dela pela mãe e por um irmão. O pai que assumiu a religiosidade dos colonizadores despreza os deuses antigos e guia os passos dos seus quase como um diretor de presídio. Sufocada e sem conhecer outra realidade, as coisas mudam para a jovem quando vai passar um tempo com a tia, professora de universidade e residente em outra cidade. E aí ela começa a perceber que o mundo não era o que pensava. Com a realidade nigeriana de pano de fundo (que em alguns aspectos não difere muito da nossa), a autora mistura autobiografia e ficção em um relato que por mais simples e sensível que possa parecer de início, carrega uma força arrebatadora junto consigo.

Nota: 8,0

Leia um trecho aqui:
https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/12753.pdf


sábado, 12 de outubro de 2019

Literatura: "A Mulher Na Janela" e "Marrom e Amarelo"


Um dos livros mais vendidos de 2018 nos EUA foi “A Mulher Na Janela” (The Woman In The Window) que logo teve os direitos vendidos para um filme que chega provavelmente no início do ano que vem com a estupenda Amy Adams no papel da protagonista. A editora Arqueiro publicou nacionalmente a obra no ano passado com 352 páginas e tradução de Marcelo Mendes. Com elogios de autores consagrados como Gillian Flynn e Stephen King, o trabalho causou burburinho também por conta do autor. Creditado no livro como A. J. Finn, na verdade descobriu-se depois que se tratava de Dan Mallory, escritor que conta com um histórico de mentiras e invenções na bagagem (mas, isso é outra história). Na trama, Anna Fox sofre de agorafobia e vive trancada em casa com pouco contato real além do psiquiatra e da fisioterapeuta. Tem como principal passatempo espionar os vizinhos pela janela se dedicando a pesquisas virtuais sobre cada um deles, enquanto mistura seus remédios com (muito) vinho, assiste filmes antigos e conversa em um fórum da internet com pessoas que sofrem da mesma doença. Com uma rotina quase que totalmente estabelecida vai muito levemente superando os medos, mas vê as coisas mudarem quando uma nova família muda para a rua. Da curiosidade e excitação inicial a trama gira para uma sequência de ardis, farsas e trapaças embaladas com muita paranoia. Com reviravoltas interessantes a leitura é daquelas capazes de prender o leitor, contudo ao término é esquecida tão rapidamente quanto foi consumida.

Nota: 6,0

Leia um trecho aqui: http://www.editoraarqueiro.com.br/media/upload/livros/amulhernajanela_trecho.pdf


O racismo está entranhado na cultura nacional, por mais que alguns rebolem com argumentos mirabolantes ou comparações esdrúxulas tentando negar esse fato. Está na escola, na rua, na universidade, no escritório, em casa, na festa. Vai desde o apelido “inofensivo” até atos e injúrias que desestruturam e são espelhados em maior grau para o resto da vida em oportunidades de trabalho, promoções, reconhecimento, etc. É sobre isso (e mais um monte de coisa) que o escritor gaúcho Paulo Scott fala em “Marrom e Amarelo”, lançamento desse ano da editora Alfaguara com 160 páginas. Na base é a história dos irmãos Federico e Lourenço em diversos momentos da vida que se entrelaçam do meio para o final, porém vai além disso e é – em algum nível - a história de milhares de pessoas espalhadas pelo país. Começa com Federico entrando em uma comissão federal de um novo governo espúrio que tem como missão rever o processo do ingresso de jovens negros no ensino superior pelo sistema de cotas, retorna para a adolescência em Porto Alegre e deságua no confronto da sobrinha com a Polícia em um protesto. De absurdos maiores como a criação de um software para definir quem é negro ou não até coisas menores do cotidiano, a obra de Paulo Scott é Brasil em estado puro. Com uma narrativa que alterna o tipo de escrita, mas nunca deixa de ser direta, clara e simples, temos um trabalho poderosíssimo e mais atual e relevante do que nunca. Uma pedrada daquelas.

Livro: 9,5

Leia um trecho aqui:
https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/28000141.pdf