quarta-feira, 31 de julho de 2019

Literatura: "Elza" e "Ideias Para Adiar O Fim do Mundo"


Antes da palavra resiliência aparecer diariamente em status e perfis de redes sociais (sem muito sentido na maioria delas, convenhamos), ela já encontrava há muito tempo relação direta com a carioca Elza Gomes da Conceição, a Elza Soares. Desde criança, passando pelo ano de 1953 onde teve a “audácia” de subir em um auditório comandado por Ary Barroso encantando o apresentador e o público até a última revigorada na carreira iniciada com o estupendo disco “A Mulher do Fim do Mundo” de 2015, a vida dela é uma constante de retomadas, quedas, adaptação, mudanças e novas retomadas. Em “Elza” que a editora Leya lançou em 2018 com 384 páginas, o jornalista Zeca Camargo se debruçou sobre essa vida tão ampla e tão marcante que já atravessa oito décadas com a missão de contar parte de tudo que aconteceu baseado em pesquisas e principalmente nos olhos e memória da própria artista. De sair na rua quando criança catando coisas do chão e do lixo para vender depois e ajudar em casa, de ser forçada a casar aos 13 anos com um homem que também não era mais que um garoto, da morte do primeiro filho, do relacionamento mais que intenso com Garrincha, das diversas baixas e dos recomeços que vieram em sequência, Elza sempre renasceu mais e mais forte. Com o caminho sempre marcado pela violência e o preconceito temos uma história de vida espetacular, que apesar de ser escrita com um tom talvez leve demais, ainda assim vale cada página.

Nota: 8,0



Ailton Alves Lacerda Krenak nasceu na década de 1950 na região do Vale do Rio Doce em Minas Gerais, no território do povo que carrega no nome e onde a mineração continua de modo incisivo até hoje. Ativista, escritor, pensador e um dos líderes mais renomados dos povos indígenas no Brasil, tem esse ano pela Companhia das Letras outro livro publicado, chamado “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”. Em formato pequeno (pocket) e com apenas 88 páginas, o trabalho se destaca pela força inversamente proporcional ao tamanho. Emprestando o nome do título de uma palestra proferida em uma universidade portuguesa em março desse ano, se baseia ainda em outra palestra e uma entrevista, ambas efetuadas em Lisboa no ano de 2017. Naquilo que apresenta e se propõe a discutir, Krenak cumpre o objetivo de fazer o leitor pensar, se indagar e questionar não somente os caminhos do mundo, mas os próprios passos. Em determinado momento pergunta no texto: “Somos mesmo uma humanidade?” E aí? Será que somos mesmo? Difícil acreditar nisso depois de passar um dia lendo as notícias atuais. Conversando sobre passado, presente e futuro, “Ideais Para Adiar o Fim do Mundo” é uma obra que ganha ainda mais força depois dos absurdos e posicionamentos cometidos pelos atuais mandatários da nossa nação e se torna um convite para que possamos contar mais uma história, sermos mais conscientes, nos posicionar a favor da natureza e adiar assim a cada dia - um pouco mais que seja - o fim.

Nota: 8,5

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Quadrinhos: "Nori e Eu", "Na Quebrada - Quadrinhos de Hip Hop", "O Fio do Vento" e "Punk Rock Jesus"

 

Masanori Ninomiya hoje com 33 anos foi diagnosticado quando criança com características de espectro autista. Não se expressava com palavras, mas encontrou no desenho uma maneira de absorver o que acontecia ao seu redor. Em “Nori e Eu”, ele conta essa história junto com a mãe Sônia Ninomiya, professora aposentada de literatura e cultura japonesa. Sob supervisão e edição de arte do Caeto, o trabalho em preto e branco escrito a quatro mãos têm 92 páginas e publicação esse ano da editora WMF Martins Fontes. O álbum é um retrato de luta e amor incondicional entre mãe e filho que a cada conquista faz o leitor vibrar junto. Da busca pela identificação maior da sua situação, passando pela convivência na escola e chegando em processos claros de evolução como sair sozinho e se expressar de modo claro, temos uma história que além de bastante inspiradora é extremamente bonita e forte.

Nota: 7,5

Existem iniciativas que só pela temática e concepção já merecem destaque. Se isso for aliado a material de qualidade, essa iniciativa ganha amplitude e se estende além desse destaque inicial. É o caso de “Na Quebrada – Quadrinhos de Hip Hop” da editora Draco com 184 páginas publicada esse ano. É uma coletânea de oito histórias organizada pelo versátil Raphael Fernandes (que também assina um dos roteiros) versando diretamente (mas não somente) para o público amante do rap e do hip-hop e para os moradores das periferias do país. A obra usa o cotidiano como inspiração sem esquecer de adicionar como pano de fundo o preconceito e a falta de oportunidade que andam do lado desse cotidiano. “Sampleador”, “Meu corpo, minhas regras” e “Um conto de duas cidades” exibem uma carga maior de intensidade, enquanto “O rei do groove” do Guabiras fecha a obra em alto estilo e (muito) bom som.

Nota: 8,0

A chegada de um novo trabalho do Camilo Solano é motivo para comemoração. O autor de “Desengano” e “Semilunar” é dono de uma das vozes mais interessantes do quadrinho nacional e em “Fio do Vento” - publicação de 2019 da editora Veneta com 100 páginas – isso se reafirma. Nas duas histórias que se entrelaçam cuidadosamente na trama e abrem espaço para que outras sejam contadas paralelamente, Solano faz o leitor ir com calma e até voltar para ler de novo. Os personagens carregam aquela diretriz que apesar das porradas da vida e dos caminhos escolhidos, ainda se deve ter alguma vontade de ir em frente nem que seja para um mísero alívio qualquer. Um desses personagens quando fala que está esgotado apesar do ano ter apenas começado ou vê que a vida passou e não andou como desejava rende momentos brilhantes apoiados sempre no traço vigoroso e expressivo do artista.

Nota: 8,5

“Punk Rock Jesus” foi escrita e desenhada pelo Sean Gordon Murphy que recentemente fez a ótima “Batman: Cavaleiro Branco”. Originalmente publicada nos EUA em 6 edições dentro do hoje extinto selo Vertigo da DC Comics entre 2012 e 2013, a série ganhou uma especialíssima edição de luxo pela Panini Books no ano passado com 364 páginas, onde mais de cem são esboços e excelentes considerações do autor sobre os rumos e decisões que tomou na trama. Abordando uma temática bem espinhosa conversa com voracidade com os dias atuais por mais absurdo que as premissas possam parecer logo de entrada. Com uma arte feroz e provocativa o texto ataca religião, conservadorismo e a manipulação da mídia para afirmar narrativas mentirosas (lembra algo?) enquanto apresenta um jovem tentando entender o seu verdadeiro lugar no mundo. Fácil uma das melhores obras dos anos 2000, “Punk Rock Jesus” é para se ter na estante.

Nota: 10,0




sexta-feira, 5 de julho de 2019

Cinema: Divino Amor

Baseado nos últimos quatro anos do cenário político, econômico e social brasileiro alguns futuros se apresentam como possíveis, sendo que nenhum deles é muito animador. Não se trata de pessimismo ou terrorismo precoce, mas a verdade é que nossa nação retrocedeu demasiadamente nesse período, mesmo considerando as situações propícias para tanto. Desses futuros um dos que mais assusta é a implantação de um governo baseado e ancorado em doutrinas religiosas acima de tudo e de todos. Inclusive do próprio Deus.

É nesse cenário que o diretor pernambucano Gabriel Mascaro mergulha em “Divino Amor” que estreou recentemente nos cinemas. Ambientado em 2027 apresenta um país na beira do fundamentalismo e que não recebe em cena quaisquer sinais de revoluções ou insatisfações tão inerentes nesse estilo de ficção. Quando esses sinais aparecem são mais por conta da burocracia extremada para servir aos interesses do governo (retratada de modo excelente em uma cena de um arquivo de pastas), do que por reclamações do estilo de vida.

A protagonista é Dira Paes, que vive Joana, uma funcionária de Cartório que atende a casais querendo se divorciar. Como acredita fielmente no governo e suas crenças (para ela não se trata de distopia e sim de utopia), ela usa de todos os artifícios para interferir na vida desses casais, dando opiniões e colocando empecilhos mil para que eles não se divorciem. E se vangloria para tudo e todos quando consegue “salvar” algum casamento que na maioria das vezes recebe o auxílio da igreja que dá nome ao filme e frequenta com o marido Danilo (Júlio Machado).

Narrado em off por uma voz de criança quase robótica, “Divino Amor” mostra sinais da intervenção do estado na vida pessoal como na cena da praia onde as mulheres estão cobertas e os homens de sunga, na maneira que fala dos “desgarrados” ou nos scanners espalhados nas entradas de lojas e repartições. Exibe alguns alívios cômicos que usam da sátira como o Drive-Thru de oração comandado por um pastor interpretado por Emílio de Mello, a festa do Amor Supremo - uma espécie de rave nacionalista religiosa que substitui o carnaval - ou nas práticas para lá de peculiares da igreja frequentada por Joana.

Gabriel Mascaro traz do seu filme anterior (“Boi Neon” de 2015) as cores, luzes, estilo sonoro e o sexo como força representativa da trama, além da exploração individual de pequenas características dos personagens. Com uma atuação brilhante de Dira Paes tem na fotografia de Diego Garcia e na direção de arte de Thales Junqueira, outros fortíssimos pontos técnicos. Por não ser um filme longo, algumas situações apresentadas que poderiam ser mais discutidas acabam ficando meio no ar, contudo isso não afeta o resultado.

“Divino Amor” é um filme que pode ser interpretado de diversas maneiras, partindo simplesmente da distopia apresentada que é plenamente possível – onde até os absurdos geram risadas meio tensas - ou indo para discussões sobre individualismo, mística e o uso da religião como força de coação dos pobres e vulneráveis para o ganho de poucos. Mas, sobretudo, expõe brilhantemente que em um sistema fascista por mais devoto que você seja, basta um pequeno erro ou desentendimento para que esse sistema se volte contra você e o esmague. Simples assim.

Nota: 9,0