sábado, 18 de fevereiro de 2017

Literatura: “Infinita Highway: Uma Carona com os Engenheiros do Hawaii” e "Objetos Cortantes"


Dentro do rock nacional nascido nos anos 80 a banda Engenheiros do Hawaii era difícil de compreender. Com a figura controversa de Humberto Gessinger na frente vendeu mais de 100 mil de todos os discos da estreia de 1986 (“Longe Demais das Capitais”) até 1993 (“Filmes de Guerra, Canções de Amor”) e estourou com “O Papa é Pop” de 1990 que a levou para estádios, programas dominicais e tudo mais. Humberto colocou em livro em 2009 (“Pra Ser Sincero”) uma boa parte das aventuras desde o primeiro show, mas isso do ponto de vista dele, o que deixou de fora aquilo menos louvável em uma trajetória. “Infinita Highway: Uma Carona com os Engenheiros do Hawaii” do jornalista gaúcho Alexandre Lucchese chegou ano passado com a missão de dissecar esse fenômeno de modo mais amplo e explicar tamanha adoração pelo grupo e seu dono até hoje, uma vez que ele continua fazendo shows cheios pelo Brasil, mesmo que em intensidade menor. Com extenso trabalho de pesquisa, 328 páginas e publicação da editora Belas Letras, o livro apresenta a banda desde a formação em 1985 que seria para um único show até “Simples de Coração”, disco de 1995 que foi o último do baterista Carlos Maltz. Entre o vislumbre, a inadequação e o profissionalismo nos mostra perfis de artistas talentosos, mas pouco a vontade com o processo do negócio. Narra também as saídas de Carlos Stein (que depois fundaria o Nenhum de Nós), de Marcelo Pitz (baixista da estreia) e principalmente de Augusto Licks, o ótimo e experiente guitarrista que transformou a música do grupo. É um livro indicado para fãs, mas que não consegue avançar além, trazendo observações repetidas sem meter o dedo nas feridas com a intensidade que se esperava, além de ter decisões questionáveis como inserir depoimentos de fãs totalmente desnecessários. Assim como a banda, alterna boas e interessantes passagens com outras tão chatas como as músicas mais enfadonhas do grupo.

Nota: 5,0

Twitter do autor: http://twitter.com/alexandrelucche 



Com “Garota Exemplar” a escritora Gillian Flynn se tornou conhecida em boa parte do mundo, ainda mais depois da ótima adaptação cinematográfica feita pelo diretor David Fincher em 2014. No ano seguinte a editora Intrínseca lançou no Brasil a estreia dela chamada “Objetos Cortantes” (Sharp Objects, no original), que saiu nos EUA em 2006. Com 256 páginas e tradução de Alexandre Martins a obra tem como protagonista Camille Preaker que trabalha em um pequeno jornal de Chigago, longe dos líderes do setor. Por essa razão que o editor resolve enviá-la a pequena e pacata Wind Gap, no estado do Missouri, cidade onde ela cresceu e passou boa parte da vida. O intuito é fazer uma matéria sobre dois assassinatos de crianças que os grandes jornais ainda não prestaram atenção, pois estão voltados para outros assuntos, e assim dar um furo a pequena empresa. Receosa e muito relutante, Camille se manda para a cidade natal para ficar na casa da mãe que nunca se deu nada bem, do padrasto que mal fala e da pequena meia-irmã que não conhece direito. Durante o livro além de mostrar todas as agruras passadas e as marcas que deixaram na personagem principal, a autora leva o interesse pelo caso devagarinho para o caminho da obsessão, enquanto preenche os espaços com coadjuvantes repletos de segredos e disfunções. Em “Objetos Cortantes”, Gillian Flynn faz um suspense sombrio e digno, já expondo as qualidades que usou com grande destreza na obra de maior sucesso, como deixar a ambiguidade sempre presente e fazer um reviravolta na trama quando o leitor menos espera. A autora que já viu dois livros virarem filme (o já citado “Garota Exemplar” e também “Lugares Escuros”) verá “Objetos Cortantes” se transformar em série que por enquanto tem produção da HBO e a estupenda Amy Adams no papel de Camille Preaker. Nada mal.

Nota: 7,0

Site da autora: http://gillian-flynn.com


Leia um trecho do livro, aqui.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

"Quadrinhos": "Doutor Estranho - Shamballa" e "Ruínas"

Você tem nas mãos a oportunidade de conduzir a humanidade para uma nova época resplandecente e brilhante onde todo o potencial será alcançado na totalidade e o mundo será um lugar de paz e harmonia. Porém, tem um problema, um inimaginável problema no meio. Para que isso ocorra boa parte da população precisa ser obliterada, 3/4 para ser bem exato, e é você que ditará o processo. Parece papo de cientista maluco, de alguma seita radical ou de um tirano fanático, mas é essa situação que Stephen Strange precisa lidar em “Doutor Estranho - Shamballa” que a Panini Books relançou no país no final do ano passado com 68 páginas, capa dura e formato um pouco diferente do usual (21 x 28cm). Publicada em setembro de 1986 nos EUA, o álbum já tinha ganhado publicação anterior aqui no final dos anos 80 pela editora Abril, mas nem se compara ao capricho e o papel dessa nova edição. O argumento é elaborado em conjunto por J. M. DeMatteis (Moonshadow) e Dan Green (Wolverine), sendo que este último assume sozinho a belíssima arte pintada. A trama inicia quando no aniversário de morte de seu antigo mestre, o Doutor Estranho resolve voltar ao Himalaia para prestar homenagem ao Ancião, mas descobre que este lhe deixou uma incumbência nada fácil de ser resolvida. A missão é aceita com um pouco de dúvida no início e é levada adiante devido a confiança do Mestre das Artes Místicas no mentor e amigo. Entretanto essa dúvida vai aumentando no decorrer da sua ação levando o personagem principal a uma rota que inclui conhecimento pessoal, briga com o passado e a pressão das escolhas. Na verdade, “Doutor Estranho - Shamballa” é sobre isso, o poder das escolhas e o preço cobrado por elas, sendo envolvida por uma arte encantadora e um roteiro bem elaborado.
Nota: 7,0


Peter Kuper nasceu em 1958 nos Estados Unidos e se destacou no mundo dos quadrinhos por conta da revista “World War 3 Illustraded” e da tirinha “Spy Vs. Spy” que sai pela “MAD Magazine” desde o final dos anos 90, porém têm diversas outras obras no currículo que trazem sempre que possível um afiado olhar crítico tanto político, quanto social.  Uma dessas obras foi lançada aqui na Comic Con Experience do ano passado onde o autor esteve conversando e dando autógrafos. “Ruínas” (Ruins, no original) é de 2015 e chegou ao país pelo selo Jupati Books da Marsupial Editora. São 326 páginas de uma história magistralmente construída pelo autor e com uma arte do grau mais elevado possível. Peter Kuper entrelaça em “Ruínas” a busca de um casal para se encontrar com a viagem de uma borboleta monarca que migra do Canadá para o México e se constitui como observadora afiada. Samantha e George saem de Manhattan para Oaxaca no México para um ano sabático, onde a esposa quando jovem já passou um período e deixou alguns fantasmas. Ela em teoria vai para acabar de escrever um livro e ele, desempregado, para se renovar e projetar novos caminhos. Todavia, mais no fundo está o objetivo maior de deixar o casal mais alinhado e resolver questões pertinentes como a geração ou não de um filho em um mundo tão caótico e destrutivo. Mas o ambiente mexicano oferece outras nuances e quando menos se espera os dois estão envolvidos na briga política que acontece na região, com greves, opressões, corrupções e abuso policial. Enquanto isso a borboleta monarca passa por cidades com violência explodindo, fábricas contaminando o ar e rios completamente poluídos atestando todo o nosso cuidado com o mundo em que vivemos. “Ruínas” ganhou o conceituado prêmio Eisner no ano passado de melhor álbum gráfico, o que é justíssimo, pois de onde se olhe e como se veja é uma obra sensacional em todos os quesitos.

Nota 10,0


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Quadrinhos: "Astronauta - Assimetria" e "Você é um Babaca, Bernardo"


Quando “Astronauta - Magnetar“ foi publicado em 2012 talvez não se imaginasse que a iniciativa de fazer uma linha de graphic novels com os tradicionais personagens de Mauricio de Sousa fosse dar tão certo e chegar a 14 álbuns no total em menos de 5 anos, sem contar ainda os que estão por vir. Era incontestável o apelo de personagens tão cravados na mente do público, no entanto a empreitada avançou mais do que se ambicionava em números e, principalmente, qualidade. Danilo Beyruth (Bando de Dois) que iniciou essa jornada voltou a mais uma história com o viajante espacial em 2014 com “Astronauta – Singularidade” e no final do ano passado novamente com “Astronauta – Assimetria”. Se a segunda incursão não convenceu tanto assim em relação a estreia, dessa vez o resultado é do mesmo nível. Com páginas a mais do que antes (são 98 agora), a edição da Panini Comics que está disponível mais uma vez em dois formatos de capa (cartonada e dura) é uma história que pode ser lida individualmente, mas que sabiamente mantém vínculo e referências com as jornadas anteriores. Beyruth assume o roteiro e a arte (agora digital) e as cores ficam na responsabilidade de Cris Peter, que tira a missão de letra como de costume. Na trama, o Astronauta está na Terra descansando da última missão quando vê sua amada Ritinha na rua com uma criança e entra em parafuso voltando para a sede da BRASA (Brasileiros Astronautas) em busca de uma tarefa que lhe faça esquecer. Parte então para Saturno e vai se deparar com forças maiores do que está acostumado e uma situação inusitada ao final. Com quadros grandes, o autor consegue se aprofundar cada vez mais no personagem que assumiu, dando tons e novas modulações, ampliando o que já estava feito. Além disso, presta uma bonita homenagem a Jack Kirby com a inserção de figuras que remetem a trabalhos clássicos do mestre.

Nota: 8,0


Alexandre S. Lourenço já vinha fazendo bonito nos seus quadrinhos online e em “Robô Esmaga”, reunião de parte desse trabalho publicado em 2015. Em setembro do ano passado apresentou uma obra ainda mais interessante na primeira aventura mais longa que encara, longe das pequenas tiras habituais. “Você é um Babaca, Bernardo” tem 132 páginas e foi lançado pela editora Mino trazendo algumas ideias já exploradas antes pelo autor como cotidiano, rotina e inadequação social, mas embaladas em uma versão apurada e com apresentação sequencial. Mantendo o traço minimalista e quase não utilizando de quadros tradicionais, expondo novamente a experimentação que gosta de fazer, criou uma história arrebatadora sobre temas que em teoria não são interessantes no seu cerne, mas estão presentes em todos os lugares, em cada esquina. A maneira que encontra para narrar o dia a dia do personagem principal é notável e faz o leitor ficar atento a cada pequeno detalhe que insere gradativamente. Bernardo é um cara comum, com uma vidinha ordinária e sem quaisquer surpresas. Acorda, se arruma, vai ao trabalho, volta para casa, assiste televisão e dorme. No outro dia faz tudo de novo. Às vezes vai ao trabalho de ônibus, outras de bicicleta, porém sempre se posicionando no mesmo cubículo até a hora de retornar para casa. Rotina, rotina e mais rotina até que uma garota cruza o caminho e as coisas passam a ser olhadas por outro viés. Em “Você é um Babaca, Bernardo”, Alexandre S. Lourenço explora a relação entre mente e corpo, entre desejo e acomodação, entre inércia e vontade. Uma briga que no cansaço da vida é vencida na maioria das vezes pela opção mais fácil, o que acaba por deixar tudo mecânico e insosso. Explorando sabiamente esses pontos o autor apresenta uma obra que faz o leitor ponderar sobre o estado atual das coisas.

Nota: 9,0