Mais um ano foi embora e esse ano
particularmente foi bem mais complicado que os anteriores. O país foi tomado
por uma onda de ódio e intolerância amplificada pelas redes sociais, que
confesso ainda não tinha visto. Não foi fácil não. Um ano em que o bom jornalismo
foi jogado para escanteio, discussões viraram normais na internet, nos bares e
em casa. Um processo que ainda acredito ser sadio nessa nossa tão nova
democracia gerada a tanto custo. E esse custo para chegar até aqui, não devemos
esquecer nunca.
O blog completou 10 anos de vida
em 2015. Muito tempo, quem diria. As atualizações foram um pouco mais
constantes que no ano anterior, apesar do trabalho tomar boa parte do tempo e
não permitir mais. 2015 foi também o ano que tivemos mais acessos, nada
extraordinário, mas um pequeno crescimento ali em torno dos 8%, porém superando
todos que antes vieram. Por isso, deixo meu agradecimento a cada um que passou
por aqui, tirou um tempinho para ler os textos. Meu muito obrigado mesmo.
Espero que algum texto do blog tenha levado você a descobrir um livro, um
quadrinho, ver um filme, uma série ou escutar um disco.
Falando nisso, o foco em 2015
mudou um pouco por aqui. Acho que deu para perceber. De vez em quando é bom
mudar. Como apaixonado que fui desde moleque por quadrinhos transformei eles no
carro-chefe do blog em 2015 em conjunto com a literatura. Esses dois foram
nossos focos principais. Não que não tenham textos sobre discos, shows, séries
e filmes, mas eles ocorreram em menor escala. Isso também não quer dizer que a
produção musical passou em branco por aqui, logo a música que foi o motivo do
Coisa Pop ter sido criado. Ouvi muita coisa e o melhor está disposto no “Top
Top” ali do lado direito.
Bom, é isso.
Que 2016 seja um ano com mais
amor, precisamos muito. Que as redes sociais ocupem menos tempo nas nossas
vidas e o lado físico seja valorizado novamente. Menos emoticons, mais abraços.
Menos rancor, menos ódio, menos intolerância. Mais diversidade, criatividade,
liberdade. Mais generosidade. E, claro, muita e muita e muita cultura de
qualidade.
Em 17 de dezembro de 2015 às
13:00hs adentrei a sala de cinema em um shopping de Belém para assistir “Star Wars: O Despertar da Força”, com
ingresso comprado em 20 de outubro, quase dois meses antes, naquilo que seria a
estreia na cidade. Não foi bem a estreia (tiveram duas sessões antes, uma no
dia anterior inclusive, à meia noite), mas serviu como tal. Ao contrário de “Star
Wars: Episódio I – A Ameaça Fantasma” de 1999 dessa vez eu não ia sozinho para
a sala e levava comigo meu sobrinho de 14 anos, com a intenção de que o filme
fosse bom e pudesse passar um pouco da magia para ele, acostumado aos demais
longas da franquia por minha influência.
A relação que temos com nossas
obras culturais mais queridas é delicada, bem delicada. Ao mesmo tempo que internamente
queremos mais coisas, temos grande receio que façam “besteira” com os
personagens e a história que faz parte da vida. Foi assim com o filme de 1999
que iniciava a segunda trilogia, muito se falou, muito se esperneou, e por mais
que muitos considerem o pior filme da franquia pelo tom infantilizado e por
criações meio insossas, ainda assim o longa apresentou méritos e deu o ponto de
partida para dois filmes melhores. Hoje, “Star Wars” (ou “Guerra nas Estrelas”,
como conhecemos antes aqui) tem como centro os seis filmes já lançados. E
pronto.
Dito isso, quando a Disney
anunciou que ia fazer uma nova trilogia dessa vez com eventos situados após “O
Retorno do Jedi” de 1983, esse receio veio logo à tona. Aos poucos, no entanto,
as preocupações foram rareando, mesmo quando o criador George Lucas foi deixado
de lado da criação. O comando da nova empreitada ficou com J.J. Abrams, de currículo
vasto, inclusive já tendo reiniciado a franquia “Star Trek” em 2009, mostrando-se
apto para a missão. De competência comprovada, o diretor mesmo se equivocando
em uma ou outra produção, acerta com frequência, como vimos, por exemplo, em “Super
8”, filme de 2011 que recriava a atmosfera de trabalhos oitentistas para o
público juvenil.
J. J. Abrams, que de besta não
tem nada, se cercou de Lawrence Kasdan para construir o roteiro, escritor que
participou da elaboração de dois filmes da trilogia original e conhecia muito
bem os personagens e o cenário da franquia. Muitos caminhos devem ter sido
imaginados para a construção da história, contudo, todos sabiam que tinham uma
bomba na mão, pois além de fazer um produto palatável para um novo público a
fim de cimentar o caminho dos filmes posteriores, e assim gerar o lucro que a
Disney espera, não poderiam esquecer em momento algum do público antigo e até
mesmo respeitar os fãs mais devotos, que foram responsáveis, em considerável
parcela, por deixar “Star Wars” dentro do patamar que chegou.
E em 2 horas e 15 minutos de
filme isso foi alcançado de maneira exemplar. Na trama, depois de três décadas
da morte de Darth Vader, surge uma instituição dessas cinzas que aterroriza a
galáxia. Comandada pelo obscuro e enigmático Snoke (Andy Serkis de “O Senhor
dos Anéis”), tem Kylo Ren (Adam Driver de “Frances Ha”) como principal homem,
poderoso com a força e no uso dos sabres de luz. Devoto de Vader, Kylo Ren é um
personagem angustiado e com inúmeros conflitos pipocando dentro de si no que
tange a família, a seu lugar no mundo e a seus deveres. Do outro lado, o
exército rebelde tenta a todo custo derrubar esse novo império do mal e apresenta
nesse momento da história a princesa Leia (Carrie Fisher) como general.
No meio dessa briga é que entram
os novos protagonistas. Finn (John Boyega) é um soldado, um stormtropper da
Primeira Ordem que não concorda com os atos sanguinários a que está sujeito e
na primeira chance foge disso (mais por medo do que por coragem, é verdade) com
o piloto rebelde Poe Domeron (Oscar Isaac). Após a fuga ele se depara com Rey
(Daisy Ridler, já ganhando os corações), que acaba meio sem querer entrando no
meio da confusão. Após essa parte inicial,
“Star Wars: O Despertar da Força” vai engatando novos personagens como o
robozinho Bb8 e antigos ídolos como Han Solo (Harrison Ford), enquanto
homenageia o passado e recebe palmas e uivos da plateia no cinema e espalha
perguntas e novos conceitos para o restante dessa trilogia.
O ator francês Jean Reno, disse
certa vez, que “o cinema é antes de tudo,
um transmissor de divisão: ele só pode ser feito por alguns conhecedores”.
Com “Star Wars: O Despertar da Força”,
J. J. Abrams prova que é um desses conhecedores e entrega ao público um
trabalho com a universal briga do bem contra o mal, e como sempre na franquia,
um pequeno ato de liberdade contra a opressão e violência dos poderosos. A
empolgação do meu sobrinho ao sair do cinema, extasiado com tudo que viu, assim
como da dupla de pai e filho que estavam na sessão com seus sabres na mão, é a
prova que sim, mesmo em 2015, com tudo que nos ronda e cerca, o cinema ainda
pode ser mágico e encantador.
O inverno é rígido, pesado. É
necessária muita dedicação para sobreviver em clima tão hostil, e seria normal
que essa dedicação deixasse o semblante mais pesado, o coração mais duro. No
entanto, quando um jovem sai para buscar lenha e se depara com um visitante
meio estranho vestido com terno, ele automaticamente o convida para se aquecer na
sua casa (mas antes pede ao pai), e ao invés de dureza, exibe generosidade.
Esse é o tom de “Pétalas”, graphic
novel que conta com roteiro e arte de Gustavo Borges (da webcomic “Edgar”) e
cores da excelente Cris Peter (“Casanova”, “Astronauta: Magnetar”). O álbum foi
financiado coletivamente e bateu recorde dentro do campo de quadrinhos na
plataforma que cuidou da campanha. Logo após a finalização ganhou as livrarias
e bancas do país em edição conjunta da Tambor e da Marsupial Editora. “Pétalas” tem 56 páginas e exibe diversos
mimos ao leitor nos vários extras que carrega. Não tem falas na história e o
que normalmente representa uma aposta de risco, já que são poucos autores que
conseguem se sair bem com esse tipo de escolha, aqui se mostra plenamente
funcional e demonstra o talento do jovem quadrinhista de apenas 20 anos. A arte
meiga e limpa ganha maior dimensão devido as cores sempre magistrais de Cris
Peter, que a cada trabalho melhora ainda mais (como se isso fosse possível). “Pétalas” é uma história adocicada
demais, podem até falar alguns, contudo em tempos tão cheios de ódio, radicalismo
e egoísmo, uma obra que verse sobre temas tão nobres como altruísmo, bondade,
grandeza e compaixão, tem seu lugar sim. Com o uso desses temas envoltos em
magia e fantasia, Gustavo Borges apresenta outro bom lançamento dentro do cada
vez melhor mercado nacional de quadrinhos e deixa grande expectativa para seus
próximos trabalhos.
Nota: 7,5
As republicações de quadrinhos
antigos no Brasil, via de regra, sempre trazem os mesmos personagens, os mesmos
ícones, e, em alguns casos, até mesmo as mesmas obras. Então é de se vangloriar
que a Panini Books tenha colocado no mercado um encadernado de capa dura e
lombada quadrada apresentando o obscuro Homem-Máquina como protagonista. Criado
na segunda metade dos anos 70 para a Marvel pelo mestre Jack Kirby quando este
voltava de uma temporada na DC Comics, o personagem até teve alguma importância
no universo da editora, mas há anos está escanteado e aparece muito raramente. “Homem-Máquina” tem 100 páginas e exibe
uma minissérie publicada originalmente entre outubro de 1984 e janeiro de 1985,
com roteiro de Tom deFalco, desenhos de Herb Trimpe e arte-final e cores do
grande Barry Windsor-Smith (de “Arma X”). O álbum apresenta ao leitor um futuro
distante e complexo (o ano de 2020) onde uma empresa chamada Baintronics domina
o mundo com alta tecnologia e deixa tudo e todos sob seu jugo e comando.
Todavia, nem todos aceitam isso pacificamente e um grupo de rebeldes ainda
resiste com bravura. São esses rebeldes que deparam com o Homem-Máquina
desativado e quebrado dentro de uma caixa, fora do ar há 35 anos. Entrando de
supetão na briga por liberdade, o androide criado como instrumento de guerra
que se torna algo mais, desenvolvendo personalidade, pensamentos e sentimentos
próprios é fundamental para a rebelião. “Homem-Máquina”
é uma história que versa sobre opressão, independência, coragem, ganância e
soberba, temas sempre atuais. Já publicada aqui antes há muito tempo na extinta
revista Heróis da TV, essa edição é um sopro de frescor dentro do mercado de
republicações, um alento contra o mais do mesmo, além de ser uma história com
várias virtudes.
Os anos 90 foram palco de várias
decisões bem questionáveis das duas grandes editoras de quadrinhos do mundo em
relação aos seus personagens. Na Marvel, por exemplo, uma saga bem criticada
foi “Massacre”, que sucedia a ótima “Era
do Apocalipse” e teve diversos detratores na época. Nela, os X-Men precisam
lidar com um traidor dentro de suas fileiras e com o surgimento de um vilão
extremamente poderoso (que dá o título a saga). A Panini Comics resolveu
republicar essa história em três edições agora em 2015 e a primeira delas tem
260 páginas e reúne além dos títulos dos mutantes e seus derivados, revistas do
Quarteto Fantástico, Vingadores e Hulk. Sem extras e com capa cartonada (e bem feia
visualmente) exibe como vantagem ter a trama na ordem cronológica dos títulos
da casa das ideias onde a saga se desmembrou. Em “Massacre – A Saga Completa – Volume 1” uma constelação de autores é
reunida. Lá estão Mark Waid, Scott Lobdell, Tom DeFalco, Jeph Loeb e Peter
David, sendo que o mesmo ocorre com os desenhistas com nomes como Andy Kubert, Mike
Deodato, Carlos Pacheco e Mike Wearingo, entre outros. Todavia, essa
constelação não foi suficiente para fazer da história algo palatável e válido.
O vilão quase invencível que precisa ser derrubado a todo custo é fruto da
psique quebrada e destroçada do Professor Xavier em conjunto com o Magneto.
Para que ele caia é preciso sacrifícios, mas como sabe-se bem, nos quadrinhos
sacrifícios quase nunca são para sempre e logo em seguida no evento “Heróis
Renascem” tudo volta ao normal. Por mais que hoje a Marvel e, por consequência,
a Panini tentem ressaltar “Massacre” como
algo válido e importante, as coisas não são bem assim. Mesmo com tantos nomes
bons envolvidos e grandes cenas de ação com arte competente, a saga continua
patinando e não é nada além de mediana.
Nota: 6,0
“The Sandman – Overture” teve o número inicial publicado nos EUA em
dezembro de 2013 e a edição seguinte saiu em maio de 2014. Aqui, a Panini Books
lançou agora no segundo semestre um cuidadoso encadernado incluindo essas duas
edições, com direito a alguns extras no final. Mas do que se trata essa nova
aventura de Sandman? O personagem que deu fama a Neil Gaiman volta às bancas com
roteiro dele, arte J. H. Williams III e cores de Dave Stewart em história
situada anteriormente aos fatos da estreia de “Sandman” em 1988. Mostra as
razões que levaram o mestre do Sonhar a ficar vulnerável ao ponto de ser capturado
no início da consagrada série idealizada pelo autor. “Sandman – Prelúdio 1” tem 56 páginas e apresenta o começo dessa
trama (mais duas edições virão pela frente para abarcar os números originais de
3 a 6), aproveitando para inserir no meio das páginas velhos conhecidos como o
Coríntio e os Perpétuos e fazendo leves links com outras histórias publicadas primordialmente.
O que à primeira vista aparenta ser mais um caça-níquel em cima da fama de
Sandman, cai por terra já nas primeiras páginas. Mesmo distante de ter o brilho
do que foi feito antes, “Sandman –
Prelúdio 1”, demonstra a mesma pegada, o mesmo magnetismo, a mesma magia. No
final do primeiro capítulo temos uma página quádrupla que é deleite puro, tanto
pelas diversas facetas representadas de Morpheus, quanto pela arte caprichada e
detalhista. Neil Gaiman retira um pouco mais de fantasia para o seu público,
mas aí reside um problema do álbum que é agradar belamente fãs já conhecedores,
contudo por todo o tom da história fica um pouco difícil de conquistar novos
leitores de imediato. Entretanto, isso não é nada que importe muito para quem
de novo tem na mão o arroubamento provocado por Sandman e seu universo
fantástico.
Existem determinadas obras que
pelas pessoas envolvidas na produção, como também por alguns aspectos que estão
ali pelo lado, deixam grande expectativa no que concerne a qualidade que virá.
Isso aconteceu com “Sense8”, série
produzida pela Netflix que tem como criadores os irmãos Andy e Lana Wachowski
(da trilogia “Matrix”) e J. Michael Straczynski (de “Babylon 5” e da saga em quadrinhos
“Rising Stars”). Com 12 episódios da primeira temporada disponibilizados de uma
só tacada nesse ano, a série busca inovar tendo como personagens principais
oito pessoas de várias partes do mundo conectadas mentalmente, mas que ainda
não entendem bem o que está acontecendo com elas enquanto são perseguidas por
uma instituição misteriosa. Com um início interessante a série vai caindo a
cada episódio até desmoronar em uma espiral de egos, conceitos contraditórios, caracterizações
rasas e diálogos sem a mínima inspiração. Com o foco em diversas vertentes do
conhecimento, os irmãos Wachowski se enrolam em um emaranhado de ideias mal
exploradas até mesmo nos sete episódios que dirigem. Entre todos os personagens
apresentados merecem destaque apenas Doona Bae (de “Boneca Inflável”) como Sun
Bak e Ami Ameen (de “O Mordomo da Casa Branca”) como Capheus Van Damme. Temos
também as participações de nomes conhecidos como Daryl Hannah (“Kill Bill”) como
Angelica e Naveen Andrews (de “Lost”) como Jonas Maliki, uma espécie de guru
dos “sensates” (daí vem o trocadilho
do título). Se “Sense8” virará o
jogo na segunda temporada já aprovada não dá para saber, mas por enquanto é um
desperdício de tempo para o espectador e mais um passo atrás dos criadores que
há tempos vem devendo algo do nível que se espera, assim como talvez seja a
primeira aposta errada dentro do brilhante caminho que a Netflix vem construindo
como produtora de séries.
Nota: 3,0
Com “Demolidor” a Netflix adicionou um dos personagens mais adorados da Marvel no circuito das séries com honras.
Pode-se até questionar algumas escolhas da produção no que concerne a visuais,
mas por fim foi feito um produto respeitável. “Jessica Jones”, a aposta seguinte da empresa, está inserida dentro
do mesmo universo urbano e habita também a região da Cozinha do Inferno em Nova
York se correlacionando indiretamente com “Demolidor” na primeira temporada. Criada
pela diretora e roteirista Melissa Rosenberg (“Crepúsculo”), é amplamente
baseada nas 28 edições de “Alias”
lançadas entre novembro de 2001 e janeiro de 2004 com a personagem criada por
Brian Michael Bendis e o artista Michael Gaydos como estrela. Quando surgiu nos
quadrinhos, Jessica Jones foi um pequeno furacão. Ela era uma detetive
particular que desistiu do colante de heroína, uma mulher dura e forte que não
media palavras e xingamentos, quase uma alcoólatra que usava o sexo como meio
para aliviar as dores do passado. Todas essas facetas são transportadas para a
tevê, ainda bem. Ao todo temos 13 episódios comandados por diretores
experientes de televisão como Simon Cella Jones (“Magic City”, “Treme”) e John
Dahl (“House Of Cards”, “Ray Donovan”). Jessica Jones é vivida por Krysten
Ritter (“Big Eyes”), que transpõe muito bem a anti-heroína para a tela e conta
com um elenco ajustado para lhe ajudar nisso, com destaque para Mike Colter como
Luke Cage, Carrie-Anne Moss como Jeri Hogarth e Rachel Taylor como Trish Walker. No entanto, o grande destaque fica com David Tennant como o vilão Killgrave (Homem-Púrpura nos quadrinhos) que dá um show de interpretação e afirma seu talento já mostrado,
por exemplo, em “Doctor Who”. Lógico que algumas mudanças existem e podem fazer
algum fã mais radical chiar um pouco (sendo a principal delas a ausência de
Carol Danvers como melhor amiga), contudo isso é normal. O que realmente
importa é que a essência de “Alias”
foi preservada e apresenta ao mundo uma Jessica Jones como deveria ser, indo
além do que a Netflix conquistou com “Demolidor”.
“Uma Metamorfose Iraniana” (Une
métamorfhose iraniene, no original), graphic novel do artista Mana
Neyestani, usa a famosa obra de Franz Kafka como figura comparativa para contar
a própria história. Lançada em 2012 na França, recebeu uma edição nacional esse
ano pela editora Nemo com 208 páginas e tradução de Fernando Scheibe. O enredo
da hq é regado a incompreensão, autoritarismo e permeado com os absurdos que
governos totalitários são tão craques em fazer. O autor era um ilustrador e
cartunista levemente reconhecido no Irã, tendo vários campos como fonte de
trabalho, até que com a destituição de vários jornais pelo governo foi comandar
o suplemento infantil de um jornal com ligações com o poder. Por lá ficou dois
bons anos, até que em uma das sátiras que fazia no suplemento que editava, usou
um personagem em um quadro que ele conversava com uma barata. A piada, inocente
na cabeça do desenhista, tomou grandes proporções. Tudo por conta de um termo azeri usado nesse quadro, que desencadeou
um levante na região do país habitada por iranianos de origem turca. Não
demorou muito e o governo partiu para cima do desenhista e o prendeu junto com
o editor, forçando nos interrogatórios ligações com os EUA, as “verdadeiras
razões” por trás da brincadeira e coisas do tipo. Esse fato aconteceu em 2006 e
o Irã comandado por Mahmoud Ahmadinejad triturou a capacidade de trabalho do
autor, transformou-o em bode expiatório de uma crise e o fez partir (fugido) para
fora do país em uma pequena odisseia, onde viveu no exílio por três anos até
ser acolhido pela França. “Uma
Metamorfose Iraniana” tem arte em preto e branco com destaque para as sombras
e com expressões visuais que flertam com o cartum e adicionam o humor como
instrumento apesar do tema pesado que explora. Esse equilíbrio faz do álbum uma
leitura ao mesmo tempo interessante e dinâmica, sendo mais um acerto da editora
Nemo em 2015.
Jeff Smith é um senhor artista. Criador
da série “Bone” (que começou a ser relançada no Brasil esse ano) o quadrinhista
fez um grande trabalho unindo um lado infantil com diversas vertentes adultas
em uma aventura excepcional. Quando a DC Comics o contratou para recriar um dos
personagens mais antigos da editora, Jeff Smith transportou muito dessa obra
mais conhecida para reimaginar o Shazam (ou Capitão Marvel, se preferir). Ícone
criado no final dos anos 30 por Bill Parker e C. C. Beck, começou a sair
primeiramente pela extinta Fawcett Comics, até depois de alguma briga cair nas
mãos da National, uma das percursoras da DC. Mesmo sendo peça fundamental
dentro do vasto universo mágico da editora, o personagem foi muito mal
explorado na maior parte dos últimos 30 anos, e até parecia que existia uma má
vontade em relação a sua utilização. Com Jeff Smith no comando do roteiro e da
arte, e a carta branca que lhe deram, isso foi diferente e as coisas mudaram de
figura. Primeiro ele redefiniu que o Shazam que aparece todo poderoso quando o
jovem Billy Batson grita seu nome são duas personas diferentes. Além disso,
infantilizou tudo ao redor para que as coisas ficassem mais engraçadas e ritmadas,
mesmo tendo um lado forte adulto como ele gosta de fazer. No caso do arco que a
Panini Books encaderna e publica aqui em 2015, por exemplo, esse lado está
representado pela mídia e pela prepotência governamental encabeçada pelo Dr.
Silvana. “Shazam! & A Sociedade dos
Monstros” tem edição caprichada (mas bem que poderia ter alguns extras) com
208 páginas e reúne as edições lançadas nos EUA entre abril e julho de 2007.
Serve não somente como diversão, mas também para ratificar ainda mais a maestria
de Jeff Smith, principalmente quando auxiliado pelas estupendas cores de Steve
Hamaker. Plenamente recomendável.
Riad Sattouf é filho de uma
francesa e um sírio. Seus pais se conheceram no início dos anos 70 quando
faziam faculdade na Sorbonne em Paris. Em 1978, Riad nasceu e logo depois o pai
aceitou um trabalho como professor na universidade de Trípoli na Líbia e para
lá se mandou com a família. É dessa partida que nasce a graphic novel “O Árabe do Futuro – Uma juventude no Oriente Médio (1978-1984)” (L’Arabe
du Futur: Une jeunesse au Moyen-Orient, no original), que a Editora
Intrínseca publica no Brasil agora em 2015 com 160 páginas e tradução de Debora
Fleck. Nela o autor relembra a infância vivida na França e na Líbia, como na
Síria para onde a família também foi por causa do trabalho do pai. O pai,
aliás, talvez seja a principal figura da obra. Culto, com título de Doutor no
currículo e adepto da teoria de que os árabes deveriam estudar muito para assim
poder fugir do obscurantismo da religião e almejar um futuro melhor (daí vem o
título), contrastava isso com uma ingenuidade demasiada no que tange as
questões do oriente. O choque é constante na hq e dá o tom da obra. Tanto de
ambiente pois contrasta a França com rascunho socialista de François Miterrand
contra a ditadura de Muamar Kadafi na Líbia e Hafez Al-Assad na Síria, quanto
comportamental nos costumes díspares e na formatação das duas famílias, com
destaques para as avós. O autor que além de quadrinhista é escritor e cineasta
tendo publicado vários livros e realizado dois filmes, além de ser colaborador
da revista Charlie Hebdo, resolveu cavar as lembranças pessoais depois da
guerra civil eclodida na Síria em 2011 e nas consequências geradas por isso
para os familiares de lá. “Árabe do
Futuro” é um álbum que explora muito o humor do estranho, do diverso,
repassando ao leitor a sensação de como seria para uma criança passear nesses
mundos. Exibe também uma arte forte com opção de cores direcionadas a cada
tópico e um trabalho primoroso no que tange a feições, além de tratar com
destreza situações complexas que vem assombrando o mundo nos últimos anos.
O projeto Graphic MSP já chega ao
décimo livro, o quarto somente esse ano. O que começou com “Astronauta Magnetar”
lá no final de 2012 desembarca agora em “Louco
– Fuga”, sempre mantendo um altíssimo nível de qualidade e deslizando
apenas em “Pavor Espaciar” do Chico Bento. Licurgo Orival Umbelino Cafiaspirino
de Oliveira, o Louco, é um dos personagens mais lado B de Mauricio de Sousa,
tão lado B que foi criado pelo irmão Marcio Araújo em 1973. Em épocas tão difíceis
para a arte no país trazia no peito essa ideia de liberdade, ainda que de
maneira subliminar. Coube a Rogério Coelho, premiado ilustrador de mão cheia,
apresentar o personagem dentro do projeto, sendo que foi ele quem se candidatou
e quis fazer uma história em cima de tão excêntrica e exuberante figura. Com o
auxílio de Francis Ortolan nas cores e a influência do artista inglês Dave
Mckean de “Sandman” na cabeça, Rogério conseguiu uma obra que é um vislumbre
visual absoluto. Com 84 páginas e lançamento pela Panini Comics, “Louco – Fuga” pode não ser a melhor hq
feita até agora nessa revisitação, mas sem dúvida é aquela com arte mais
encantadora. O roteiro inicia com o protagonista ainda criança quando solta um
pássaro preso pelos Guardiões do Silêncio (os vilões da trama) que tem como
objetivo calar todo o canto e alegria do mundo, tosar a criatividade geral e
imprimir a aceitação como moeda única. Reforçando as alegorias de liberdade do
personagem, o autor utiliza de metalinguagem para contar uma história surreal
que viaja no tempo e deixa no ar a sensação de incerteza, de crível, de
realidade, ao mesmo tempo em que se alinha com a fantasia, o sonho, o devaneio.
Para reforçar essas ideias não se utiliza daquela ordem normal dos quadrinhos,
os quadros em “Louco – Fuga” se
unem, mesclam, quebram, mudam de tamanho e atravessam entre si. Com o auxílio mágico
da turminha como coadjuvante, temos um álbum respeitável no quesito da fantasia
e belíssimo na parte dos desenhos, das cores e da montagem.