É um dia como qualquer outro. Os
afazeres são feitos calmamente com dedicação e parcimônia. Tudo parece igual
como sempre foi em uma pacata vila interiorana dos anos 60. Ao longe ouvem-se
cantos de pássaros e ruídos de animais. Até que ao acordar no dia seguinte os
habitantes enxergam um acampamento cheio e organizado no outro lado do rio,
conectado por uma pequena ponte. De súbito, a rotina vai para o espaço, pois a
curiosidade toma conta de todos que procuram saber quem se aventura por terras
tão remotas e quais são seus objetivos.
“A Hora dos Ruminantes”, livro escrito pelo goiano radicado no Rio
de Janeiro José J. Veiga e publicado pela primeira vez em 1966 tem como ponto
de partida o descrito no parágrafo anterior. É o segundo livro do autor e
sucede “Os Cavalinhos de Platipanto” de 1959 com seus 12 contos que fazem intersecção
entre sonho e realidade. Os dois livros estão sendo republicados esse ano pela
Companhia das Letras em comemoração ao centenário de nascimento do autor (que
faleceu em 1999) e os demais trabalhos concebidos por ele também estão
programados para sair.
Essa nova edição de “A Hora dos Ruminantes” ganha um bocado
de capricho com direito a prefácio detalhado, índice de obras relacionadas e
capa dura. Com 152 páginas demonstra ao novo leitor o realismo fantástico de
José J. Veiga que ganha paralelo na obra de autores sul-americanos como Gabriel
Garcia Márquez, Julio Cortázar, Arturo Uslar Pietri e Murilo Rubião. É um texto
onde as alegorias e metáforas tomam conta do cenário, mas sem deixar de lado a
parte coloquial da fala dos habitantes e, por conseguinte, a montagem de um retrato
do interior do Brasil.
O livro é dividido em três
partes: “A Chegada”, “O Dia dos Cachorros” e “O Dia dos Bois”. Na primeira,
como já retratado acima, a vila de Manarairema se depara com estranhos que
chegam do nada e não se apresentam nem para conversar. O estranhamento inicial
faz contrapartida com o medo que o ser humano tem da mudança, da alteração da
rotina, do novo. Mas ainda mais fundo está a analogia e a relação com a
ditadura militar em voga no país na época, podendo partir do pressuposto que os
novos moradores do local são “gente do
governo”, como diz o texto.
Com o medo se espalhando entre os
simples moradores que passam a sofrer pequenas, mas frequentes coerções, a vila
de Manarairema sofre drásticos ajustes. Isso só piora quando cães tomam de
assalto o local obrigando todos a ficarem ressabiados e com pânico do que
poderá vir, ou depois quando são bois que adentram esse espaço e não permitem
nem que se saia de casa, precisando ser inventando todo um novo meio de
comunicação para que a cidade sobreviva em meio a esses acontecimentos
estranhos e tão sem sentido para o povo da vila.
No meio dos diálogos José J.
Veiga insere bom humor ao lado do espanto, com a inserção de diversos ditados
populares, mas também é no meio desses diálogos que amplifica as imagens
alegóricas que fazem menção a verdadeira invasão que tomou conta do país naqueles
tempos. Por outro lado, “A Hora dos
Ruminantes” é um livro tão bem construído que funciona até se o leitor
relevar isso e considerar as situações somente pelo viés da estranheza e da
opressão que os habitantes de Manarairema se encontram adicionados. São essas
possibilidades que constroem o maior mérito da obra.
Nota: 9,0
A Companhia das Letras
disponibiliza gratuitamente um trecho para leitura, aqui.
Assista um vídeo com
Antonio Arnoni Prado (responsável pelo prefácio do livro) falando mais sobre a
obra do autor:
Nenhum comentário:
Postar um comentário