Mais um ano foi embora e esse ano
particularmente foi bem mais complicado que os anteriores. O país foi tomado
por uma onda de ódio e intolerância amplificada pelas redes sociais, que
confesso ainda não tinha visto. Não foi fácil não. Um ano em que o bom jornalismo
foi jogado para escanteio, discussões viraram normais na internet, nos bares e
em casa. Um processo que ainda acredito ser sadio nessa nossa tão nova
democracia gerada a tanto custo. E esse custo para chegar até aqui, não devemos
esquecer nunca.
O blog completou 10 anos de vida
em 2015. Muito tempo, quem diria. As atualizações foram um pouco mais
constantes que no ano anterior, apesar do trabalho tomar boa parte do tempo e
não permitir mais. 2015 foi também o ano que tivemos mais acessos, nada
extraordinário, mas um pequeno crescimento ali em torno dos 8%, porém superando
todos que antes vieram. Por isso, deixo meu agradecimento a cada um que passou
por aqui, tirou um tempinho para ler os textos. Meu muito obrigado mesmo.
Espero que algum texto do blog tenha levado você a descobrir um livro, um
quadrinho, ver um filme, uma série ou escutar um disco.
Falando nisso, o foco em 2015
mudou um pouco por aqui. Acho que deu para perceber. De vez em quando é bom
mudar. Como apaixonado que fui desde moleque por quadrinhos transformei eles no
carro-chefe do blog em 2015 em conjunto com a literatura. Esses dois foram
nossos focos principais. Não que não tenham textos sobre discos, shows, séries
e filmes, mas eles ocorreram em menor escala. Isso também não quer dizer que a
produção musical passou em branco por aqui, logo a música que foi o motivo do
Coisa Pop ter sido criado. Ouvi muita coisa e o melhor está disposto no “Top
Top” ali do lado direito.
Bom, é isso.
Que 2016 seja um ano com mais
amor, precisamos muito. Que as redes sociais ocupem menos tempo nas nossas
vidas e o lado físico seja valorizado novamente. Menos emoticons, mais abraços.
Menos rancor, menos ódio, menos intolerância. Mais diversidade, criatividade,
liberdade. Mais generosidade. E, claro, muita e muita e muita cultura de
qualidade.
Em 17 de dezembro de 2015 às
13:00hs adentrei a sala de cinema em um shopping de Belém para assistir “Star Wars: O Despertar da Força”, com
ingresso comprado em 20 de outubro, quase dois meses antes, naquilo que seria a
estreia na cidade. Não foi bem a estreia (tiveram duas sessões antes, uma no
dia anterior inclusive, à meia noite), mas serviu como tal. Ao contrário de “Star
Wars: Episódio I – A Ameaça Fantasma” de 1999 dessa vez eu não ia sozinho para
a sala e levava comigo meu sobrinho de 14 anos, com a intenção de que o filme
fosse bom e pudesse passar um pouco da magia para ele, acostumado aos demais
longas da franquia por minha influência.
A relação que temos com nossas
obras culturais mais queridas é delicada, bem delicada. Ao mesmo tempo que internamente
queremos mais coisas, temos grande receio que façam “besteira” com os
personagens e a história que faz parte da vida. Foi assim com o filme de 1999
que iniciava a segunda trilogia, muito se falou, muito se esperneou, e por mais
que muitos considerem o pior filme da franquia pelo tom infantilizado e por
criações meio insossas, ainda assim o longa apresentou méritos e deu o ponto de
partida para dois filmes melhores. Hoje, “Star Wars” (ou “Guerra nas Estrelas”,
como conhecemos antes aqui) tem como centro os seis filmes já lançados. E
pronto.
Dito isso, quando a Disney
anunciou que ia fazer uma nova trilogia dessa vez com eventos situados após “O
Retorno do Jedi” de 1983, esse receio veio logo à tona. Aos poucos, no entanto,
as preocupações foram rareando, mesmo quando o criador George Lucas foi deixado
de lado da criação. O comando da nova empreitada ficou com J.J. Abrams, de currículo
vasto, inclusive já tendo reiniciado a franquia “Star Trek” em 2009, mostrando-se
apto para a missão. De competência comprovada, o diretor mesmo se equivocando
em uma ou outra produção, acerta com frequência, como vimos, por exemplo, em “Super
8”, filme de 2011 que recriava a atmosfera de trabalhos oitentistas para o
público juvenil.
J. J. Abrams, que de besta não
tem nada, se cercou de Lawrence Kasdan para construir o roteiro, escritor que
participou da elaboração de dois filmes da trilogia original e conhecia muito
bem os personagens e o cenário da franquia. Muitos caminhos devem ter sido
imaginados para a construção da história, contudo, todos sabiam que tinham uma
bomba na mão, pois além de fazer um produto palatável para um novo público a
fim de cimentar o caminho dos filmes posteriores, e assim gerar o lucro que a
Disney espera, não poderiam esquecer em momento algum do público antigo e até
mesmo respeitar os fãs mais devotos, que foram responsáveis, em considerável
parcela, por deixar “Star Wars” dentro do patamar que chegou.
E em 2 horas e 15 minutos de
filme isso foi alcançado de maneira exemplar. Na trama, depois de três décadas
da morte de Darth Vader, surge uma instituição dessas cinzas que aterroriza a
galáxia. Comandada pelo obscuro e enigmático Snoke (Andy Serkis de “O Senhor
dos Anéis”), tem Kylo Ren (Adam Driver de “Frances Ha”) como principal homem,
poderoso com a força e no uso dos sabres de luz. Devoto de Vader, Kylo Ren é um
personagem angustiado e com inúmeros conflitos pipocando dentro de si no que
tange a família, a seu lugar no mundo e a seus deveres. Do outro lado, o
exército rebelde tenta a todo custo derrubar esse novo império do mal e apresenta
nesse momento da história a princesa Leia (Carrie Fisher) como general.
No meio dessa briga é que entram
os novos protagonistas. Finn (John Boyega) é um soldado, um stormtropper da
Primeira Ordem que não concorda com os atos sanguinários a que está sujeito e
na primeira chance foge disso (mais por medo do que por coragem, é verdade) com
o piloto rebelde Poe Domeron (Oscar Isaac). Após a fuga ele se depara com Rey
(Daisy Ridler, já ganhando os corações), que acaba meio sem querer entrando no
meio da confusão. Após essa parte inicial,
“Star Wars: O Despertar da Força” vai engatando novos personagens como o
robozinho Bb8 e antigos ídolos como Han Solo (Harrison Ford), enquanto
homenageia o passado e recebe palmas e uivos da plateia no cinema e espalha
perguntas e novos conceitos para o restante dessa trilogia.
O ator francês Jean Reno, disse
certa vez, que “o cinema é antes de tudo,
um transmissor de divisão: ele só pode ser feito por alguns conhecedores”.
Com “Star Wars: O Despertar da Força”,
J. J. Abrams prova que é um desses conhecedores e entrega ao público um
trabalho com a universal briga do bem contra o mal, e como sempre na franquia,
um pequeno ato de liberdade contra a opressão e violência dos poderosos. A
empolgação do meu sobrinho ao sair do cinema, extasiado com tudo que viu, assim
como da dupla de pai e filho que estavam na sessão com seus sabres na mão, é a
prova que sim, mesmo em 2015, com tudo que nos ronda e cerca, o cinema ainda
pode ser mágico e encantador.
O inverno é rígido, pesado. É
necessária muita dedicação para sobreviver em clima tão hostil, e seria normal
que essa dedicação deixasse o semblante mais pesado, o coração mais duro. No
entanto, quando um jovem sai para buscar lenha e se depara com um visitante
meio estranho vestido com terno, ele automaticamente o convida para se aquecer na
sua casa (mas antes pede ao pai), e ao invés de dureza, exibe generosidade.
Esse é o tom de “Pétalas”, graphic
novel que conta com roteiro e arte de Gustavo Borges (da webcomic “Edgar”) e
cores da excelente Cris Peter (“Casanova”, “Astronauta: Magnetar”). O álbum foi
financiado coletivamente e bateu recorde dentro do campo de quadrinhos na
plataforma que cuidou da campanha. Logo após a finalização ganhou as livrarias
e bancas do país em edição conjunta da Tambor e da Marsupial Editora. “Pétalas” tem 56 páginas e exibe diversos
mimos ao leitor nos vários extras que carrega. Não tem falas na história e o
que normalmente representa uma aposta de risco, já que são poucos autores que
conseguem se sair bem com esse tipo de escolha, aqui se mostra plenamente
funcional e demonstra o talento do jovem quadrinhista de apenas 20 anos. A arte
meiga e limpa ganha maior dimensão devido as cores sempre magistrais de Cris
Peter, que a cada trabalho melhora ainda mais (como se isso fosse possível). “Pétalas” é uma história adocicada
demais, podem até falar alguns, contudo em tempos tão cheios de ódio, radicalismo
e egoísmo, uma obra que verse sobre temas tão nobres como altruísmo, bondade,
grandeza e compaixão, tem seu lugar sim. Com o uso desses temas envoltos em
magia e fantasia, Gustavo Borges apresenta outro bom lançamento dentro do cada
vez melhor mercado nacional de quadrinhos e deixa grande expectativa para seus
próximos trabalhos.
Nota: 7,5
As republicações de quadrinhos
antigos no Brasil, via de regra, sempre trazem os mesmos personagens, os mesmos
ícones, e, em alguns casos, até mesmo as mesmas obras. Então é de se vangloriar
que a Panini Books tenha colocado no mercado um encadernado de capa dura e
lombada quadrada apresentando o obscuro Homem-Máquina como protagonista. Criado
na segunda metade dos anos 70 para a Marvel pelo mestre Jack Kirby quando este
voltava de uma temporada na DC Comics, o personagem até teve alguma importância
no universo da editora, mas há anos está escanteado e aparece muito raramente. “Homem-Máquina” tem 100 páginas e exibe
uma minissérie publicada originalmente entre outubro de 1984 e janeiro de 1985,
com roteiro de Tom deFalco, desenhos de Herb Trimpe e arte-final e cores do
grande Barry Windsor-Smith (de “Arma X”). O álbum apresenta ao leitor um futuro
distante e complexo (o ano de 2020) onde uma empresa chamada Baintronics domina
o mundo com alta tecnologia e deixa tudo e todos sob seu jugo e comando.
Todavia, nem todos aceitam isso pacificamente e um grupo de rebeldes ainda
resiste com bravura. São esses rebeldes que deparam com o Homem-Máquina
desativado e quebrado dentro de uma caixa, fora do ar há 35 anos. Entrando de
supetão na briga por liberdade, o androide criado como instrumento de guerra
que se torna algo mais, desenvolvendo personalidade, pensamentos e sentimentos
próprios é fundamental para a rebelião. “Homem-Máquina”
é uma história que versa sobre opressão, independência, coragem, ganância e
soberba, temas sempre atuais. Já publicada aqui antes há muito tempo na extinta
revista Heróis da TV, essa edição é um sopro de frescor dentro do mercado de
republicações, um alento contra o mais do mesmo, além de ser uma história com
várias virtudes.
Os anos 90 foram palco de várias
decisões bem questionáveis das duas grandes editoras de quadrinhos do mundo em
relação aos seus personagens. Na Marvel, por exemplo, uma saga bem criticada
foi “Massacre”, que sucedia a ótima “Era
do Apocalipse” e teve diversos detratores na época. Nela, os X-Men precisam
lidar com um traidor dentro de suas fileiras e com o surgimento de um vilão
extremamente poderoso (que dá o título a saga). A Panini Comics resolveu
republicar essa história em três edições agora em 2015 e a primeira delas tem
260 páginas e reúne além dos títulos dos mutantes e seus derivados, revistas do
Quarteto Fantástico, Vingadores e Hulk. Sem extras e com capa cartonada (e bem feia
visualmente) exibe como vantagem ter a trama na ordem cronológica dos títulos
da casa das ideias onde a saga se desmembrou. Em “Massacre – A Saga Completa – Volume 1” uma constelação de autores é
reunida. Lá estão Mark Waid, Scott Lobdell, Tom DeFalco, Jeph Loeb e Peter
David, sendo que o mesmo ocorre com os desenhistas com nomes como Andy Kubert, Mike
Deodato, Carlos Pacheco e Mike Wearingo, entre outros. Todavia, essa
constelação não foi suficiente para fazer da história algo palatável e válido.
O vilão quase invencível que precisa ser derrubado a todo custo é fruto da
psique quebrada e destroçada do Professor Xavier em conjunto com o Magneto.
Para que ele caia é preciso sacrifícios, mas como sabe-se bem, nos quadrinhos
sacrifícios quase nunca são para sempre e logo em seguida no evento “Heróis
Renascem” tudo volta ao normal. Por mais que hoje a Marvel e, por consequência,
a Panini tentem ressaltar “Massacre” como
algo válido e importante, as coisas não são bem assim. Mesmo com tantos nomes
bons envolvidos e grandes cenas de ação com arte competente, a saga continua
patinando e não é nada além de mediana.
Nota: 6,0
“The Sandman – Overture” teve o número inicial publicado nos EUA em
dezembro de 2013 e a edição seguinte saiu em maio de 2014. Aqui, a Panini Books
lançou agora no segundo semestre um cuidadoso encadernado incluindo essas duas
edições, com direito a alguns extras no final. Mas do que se trata essa nova
aventura de Sandman? O personagem que deu fama a Neil Gaiman volta às bancas com
roteiro dele, arte J. H. Williams III e cores de Dave Stewart em história
situada anteriormente aos fatos da estreia de “Sandman” em 1988. Mostra as
razões que levaram o mestre do Sonhar a ficar vulnerável ao ponto de ser capturado
no início da consagrada série idealizada pelo autor. “Sandman – Prelúdio 1” tem 56 páginas e apresenta o começo dessa
trama (mais duas edições virão pela frente para abarcar os números originais de
3 a 6), aproveitando para inserir no meio das páginas velhos conhecidos como o
Coríntio e os Perpétuos e fazendo leves links com outras histórias publicadas primordialmente.
O que à primeira vista aparenta ser mais um caça-níquel em cima da fama de
Sandman, cai por terra já nas primeiras páginas. Mesmo distante de ter o brilho
do que foi feito antes, “Sandman –
Prelúdio 1”, demonstra a mesma pegada, o mesmo magnetismo, a mesma magia. No
final do primeiro capítulo temos uma página quádrupla que é deleite puro, tanto
pelas diversas facetas representadas de Morpheus, quanto pela arte caprichada e
detalhista. Neil Gaiman retira um pouco mais de fantasia para o seu público,
mas aí reside um problema do álbum que é agradar belamente fãs já conhecedores,
contudo por todo o tom da história fica um pouco difícil de conquistar novos
leitores de imediato. Entretanto, isso não é nada que importe muito para quem
de novo tem na mão o arroubamento provocado por Sandman e seu universo
fantástico.
Existem determinadas obras que
pelas pessoas envolvidas na produção, como também por alguns aspectos que estão
ali pelo lado, deixam grande expectativa no que concerne a qualidade que virá.
Isso aconteceu com “Sense8”, série
produzida pela Netflix que tem como criadores os irmãos Andy e Lana Wachowski
(da trilogia “Matrix”) e J. Michael Straczynski (de “Babylon 5” e da saga em quadrinhos
“Rising Stars”). Com 12 episódios da primeira temporada disponibilizados de uma
só tacada nesse ano, a série busca inovar tendo como personagens principais
oito pessoas de várias partes do mundo conectadas mentalmente, mas que ainda
não entendem bem o que está acontecendo com elas enquanto são perseguidas por
uma instituição misteriosa. Com um início interessante a série vai caindo a
cada episódio até desmoronar em uma espiral de egos, conceitos contraditórios, caracterizações
rasas e diálogos sem a mínima inspiração. Com o foco em diversas vertentes do
conhecimento, os irmãos Wachowski se enrolam em um emaranhado de ideias mal
exploradas até mesmo nos sete episódios que dirigem. Entre todos os personagens
apresentados merecem destaque apenas Doona Bae (de “Boneca Inflável”) como Sun
Bak e Ami Ameen (de “O Mordomo da Casa Branca”) como Capheus Van Damme. Temos
também as participações de nomes conhecidos como Daryl Hannah (“Kill Bill”) como
Angelica e Naveen Andrews (de “Lost”) como Jonas Maliki, uma espécie de guru
dos “sensates” (daí vem o trocadilho
do título). Se “Sense8” virará o
jogo na segunda temporada já aprovada não dá para saber, mas por enquanto é um
desperdício de tempo para o espectador e mais um passo atrás dos criadores que
há tempos vem devendo algo do nível que se espera, assim como talvez seja a
primeira aposta errada dentro do brilhante caminho que a Netflix vem construindo
como produtora de séries.
Nota: 3,0
Com “Demolidor” a Netflix adicionou um dos personagens mais adorados da Marvel no circuito das séries com honras.
Pode-se até questionar algumas escolhas da produção no que concerne a visuais,
mas por fim foi feito um produto respeitável. “Jessica Jones”, a aposta seguinte da empresa, está inserida dentro
do mesmo universo urbano e habita também a região da Cozinha do Inferno em Nova
York se correlacionando indiretamente com “Demolidor” na primeira temporada. Criada
pela diretora e roteirista Melissa Rosenberg (“Crepúsculo”), é amplamente
baseada nas 28 edições de “Alias”
lançadas entre novembro de 2001 e janeiro de 2004 com a personagem criada por
Brian Michael Bendis e o artista Michael Gaydos como estrela. Quando surgiu nos
quadrinhos, Jessica Jones foi um pequeno furacão. Ela era uma detetive
particular que desistiu do colante de heroína, uma mulher dura e forte que não
media palavras e xingamentos, quase uma alcoólatra que usava o sexo como meio
para aliviar as dores do passado. Todas essas facetas são transportadas para a
tevê, ainda bem. Ao todo temos 13 episódios comandados por diretores
experientes de televisão como Simon Cella Jones (“Magic City”, “Treme”) e John
Dahl (“House Of Cards”, “Ray Donovan”). Jessica Jones é vivida por Krysten
Ritter (“Big Eyes”), que transpõe muito bem a anti-heroína para a tela e conta
com um elenco ajustado para lhe ajudar nisso, com destaque para Mike Colter como
Luke Cage, Carrie-Anne Moss como Jeri Hogarth e Rachel Taylor como Trish Walker. No entanto, o grande destaque fica com David Tennant como o vilão Killgrave (Homem-Púrpura nos quadrinhos) que dá um show de interpretação e afirma seu talento já mostrado,
por exemplo, em “Doctor Who”. Lógico que algumas mudanças existem e podem fazer
algum fã mais radical chiar um pouco (sendo a principal delas a ausência de
Carol Danvers como melhor amiga), contudo isso é normal. O que realmente
importa é que a essência de “Alias”
foi preservada e apresenta ao mundo uma Jessica Jones como deveria ser, indo
além do que a Netflix conquistou com “Demolidor”.
“Uma Metamorfose Iraniana” (Une
métamorfhose iraniene, no original), graphic novel do artista Mana
Neyestani, usa a famosa obra de Franz Kafka como figura comparativa para contar
a própria história. Lançada em 2012 na França, recebeu uma edição nacional esse
ano pela editora Nemo com 208 páginas e tradução de Fernando Scheibe. O enredo
da hq é regado a incompreensão, autoritarismo e permeado com os absurdos que
governos totalitários são tão craques em fazer. O autor era um ilustrador e
cartunista levemente reconhecido no Irã, tendo vários campos como fonte de
trabalho, até que com a destituição de vários jornais pelo governo foi comandar
o suplemento infantil de um jornal com ligações com o poder. Por lá ficou dois
bons anos, até que em uma das sátiras que fazia no suplemento que editava, usou
um personagem em um quadro que ele conversava com uma barata. A piada, inocente
na cabeça do desenhista, tomou grandes proporções. Tudo por conta de um termo azeri usado nesse quadro, que desencadeou
um levante na região do país habitada por iranianos de origem turca. Não
demorou muito e o governo partiu para cima do desenhista e o prendeu junto com
o editor, forçando nos interrogatórios ligações com os EUA, as “verdadeiras
razões” por trás da brincadeira e coisas do tipo. Esse fato aconteceu em 2006 e
o Irã comandado por Mahmoud Ahmadinejad triturou a capacidade de trabalho do
autor, transformou-o em bode expiatório de uma crise e o fez partir (fugido) para
fora do país em uma pequena odisseia, onde viveu no exílio por três anos até
ser acolhido pela França. “Uma
Metamorfose Iraniana” tem arte em preto e branco com destaque para as sombras
e com expressões visuais que flertam com o cartum e adicionam o humor como
instrumento apesar do tema pesado que explora. Esse equilíbrio faz do álbum uma
leitura ao mesmo tempo interessante e dinâmica, sendo mais um acerto da editora
Nemo em 2015.
Jeff Smith é um senhor artista. Criador
da série “Bone” (que começou a ser relançada no Brasil esse ano) o quadrinhista
fez um grande trabalho unindo um lado infantil com diversas vertentes adultas
em uma aventura excepcional. Quando a DC Comics o contratou para recriar um dos
personagens mais antigos da editora, Jeff Smith transportou muito dessa obra
mais conhecida para reimaginar o Shazam (ou Capitão Marvel, se preferir). Ícone
criado no final dos anos 30 por Bill Parker e C. C. Beck, começou a sair
primeiramente pela extinta Fawcett Comics, até depois de alguma briga cair nas
mãos da National, uma das percursoras da DC. Mesmo sendo peça fundamental
dentro do vasto universo mágico da editora, o personagem foi muito mal
explorado na maior parte dos últimos 30 anos, e até parecia que existia uma má
vontade em relação a sua utilização. Com Jeff Smith no comando do roteiro e da
arte, e a carta branca que lhe deram, isso foi diferente e as coisas mudaram de
figura. Primeiro ele redefiniu que o Shazam que aparece todo poderoso quando o
jovem Billy Batson grita seu nome são duas personas diferentes. Além disso,
infantilizou tudo ao redor para que as coisas ficassem mais engraçadas e ritmadas,
mesmo tendo um lado forte adulto como ele gosta de fazer. No caso do arco que a
Panini Books encaderna e publica aqui em 2015, por exemplo, esse lado está
representado pela mídia e pela prepotência governamental encabeçada pelo Dr.
Silvana. “Shazam! & A Sociedade dos
Monstros” tem edição caprichada (mas bem que poderia ter alguns extras) com
208 páginas e reúne as edições lançadas nos EUA entre abril e julho de 2007.
Serve não somente como diversão, mas também para ratificar ainda mais a maestria
de Jeff Smith, principalmente quando auxiliado pelas estupendas cores de Steve
Hamaker. Plenamente recomendável.
Riad Sattouf é filho de uma
francesa e um sírio. Seus pais se conheceram no início dos anos 70 quando
faziam faculdade na Sorbonne em Paris. Em 1978, Riad nasceu e logo depois o pai
aceitou um trabalho como professor na universidade de Trípoli na Líbia e para
lá se mandou com a família. É dessa partida que nasce a graphic novel “O Árabe do Futuro – Uma juventude no Oriente Médio (1978-1984)” (L’Arabe
du Futur: Une jeunesse au Moyen-Orient, no original), que a Editora
Intrínseca publica no Brasil agora em 2015 com 160 páginas e tradução de Debora
Fleck. Nela o autor relembra a infância vivida na França e na Líbia, como na
Síria para onde a família também foi por causa do trabalho do pai. O pai,
aliás, talvez seja a principal figura da obra. Culto, com título de Doutor no
currículo e adepto da teoria de que os árabes deveriam estudar muito para assim
poder fugir do obscurantismo da religião e almejar um futuro melhor (daí vem o
título), contrastava isso com uma ingenuidade demasiada no que tange as
questões do oriente. O choque é constante na hq e dá o tom da obra. Tanto de
ambiente pois contrasta a França com rascunho socialista de François Miterrand
contra a ditadura de Muamar Kadafi na Líbia e Hafez Al-Assad na Síria, quanto
comportamental nos costumes díspares e na formatação das duas famílias, com
destaques para as avós. O autor que além de quadrinhista é escritor e cineasta
tendo publicado vários livros e realizado dois filmes, além de ser colaborador
da revista Charlie Hebdo, resolveu cavar as lembranças pessoais depois da
guerra civil eclodida na Síria em 2011 e nas consequências geradas por isso
para os familiares de lá. “Árabe do
Futuro” é um álbum que explora muito o humor do estranho, do diverso,
repassando ao leitor a sensação de como seria para uma criança passear nesses
mundos. Exibe também uma arte forte com opção de cores direcionadas a cada
tópico e um trabalho primoroso no que tange a feições, além de tratar com
destreza situações complexas que vem assombrando o mundo nos últimos anos.
O projeto Graphic MSP já chega ao
décimo livro, o quarto somente esse ano. O que começou com “Astronauta Magnetar”
lá no final de 2012 desembarca agora em “Louco
– Fuga”, sempre mantendo um altíssimo nível de qualidade e deslizando
apenas em “Pavor Espaciar” do Chico Bento. Licurgo Orival Umbelino Cafiaspirino
de Oliveira, o Louco, é um dos personagens mais lado B de Mauricio de Sousa,
tão lado B que foi criado pelo irmão Marcio Araújo em 1973. Em épocas tão difíceis
para a arte no país trazia no peito essa ideia de liberdade, ainda que de
maneira subliminar. Coube a Rogério Coelho, premiado ilustrador de mão cheia,
apresentar o personagem dentro do projeto, sendo que foi ele quem se candidatou
e quis fazer uma história em cima de tão excêntrica e exuberante figura. Com o
auxílio de Francis Ortolan nas cores e a influência do artista inglês Dave
Mckean de “Sandman” na cabeça, Rogério conseguiu uma obra que é um vislumbre
visual absoluto. Com 84 páginas e lançamento pela Panini Comics, “Louco – Fuga” pode não ser a melhor hq
feita até agora nessa revisitação, mas sem dúvida é aquela com arte mais
encantadora. O roteiro inicia com o protagonista ainda criança quando solta um
pássaro preso pelos Guardiões do Silêncio (os vilões da trama) que tem como
objetivo calar todo o canto e alegria do mundo, tosar a criatividade geral e
imprimir a aceitação como moeda única. Reforçando as alegorias de liberdade do
personagem, o autor utiliza de metalinguagem para contar uma história surreal
que viaja no tempo e deixa no ar a sensação de incerteza, de crível, de
realidade, ao mesmo tempo em que se alinha com a fantasia, o sonho, o devaneio.
Para reforçar essas ideias não se utiliza daquela ordem normal dos quadrinhos,
os quadros em “Louco – Fuga” se
unem, mesclam, quebram, mudam de tamanho e atravessam entre si. Com o auxílio mágico
da turminha como coadjuvante, temos um álbum respeitável no quesito da fantasia
e belíssimo na parte dos desenhos, das cores e da montagem.
A vida atual deixou algumas
coisas para trás, normal, isso acontece de tempos em tempos. Uma dessas coisas
que ficaram no passado é a habilidade de consertar algo quando quebra, de
construir alguma coisa com as próprias mãos quando preciso, de aprender
serviços manuais corriqueiros de manutenção. Ou nós contratamos alguém para
fazer isso ou trocamos imediatamente aquilo que quebrou. Isso incomoda bastante
Ove, o personagem central do livro “Um
Homem Chamado Ove” (En Man Som Heter
Ove, no original) do sueco Fredrik Backman. Primeiro romance deste
jornalista foi publicado na terra natal em 2012 e virou sucesso editorial com
mais de 600 mil cópias vendidas, tradução para vinte e tantos países e início
de adaptação para o cinema. O selo Alfaguara da Editora Objetiva publica aqui
esse ano este romance com 352 páginas e tradução de Paulo Chagas Souza. Ove, o
protagonista, tem 59 anos e é completamente avesso a conversinhas, bate-papos e
futilidades. Para ele tudo é bastante direto e muito simples, o que acaba por
lhe dar um entendimento bem peculiar sobre diversos assuntos. Sua única
preocupação no momento é conseguir morrer, se matar. Sim, isso mesmo. Desde que
a esposa faleceu e ele foi aposentado pela empresa que dedicou vários anos de
bons serviços, não encontra mais nada que indique valer a pena levantar da
cama. Se dedicando com afinco a esse projeto de suicídio sempre é interrompido por
algum vizinho maluco (na sua concepção, lógico) e após sucessivas tentativas
frustradas as coisas vão mudando um pouco de aspecto. O protagonista criado
pelo autor é honesto acima de tudo, com um senso de justiça forte, robusto como
um touro, mas que tem pensamentos não muito confortáveis sobre questões como
imigrantes e cor da pele, por exemplo. Justificável pela maneira como foi
criado, assim se demonstra nas páginas do livro que recortam presente e
passado, serve para expor também, por conseguinte, o pensamento do autor em
questões delicadas que até servem de desafogo para algumas boas piadas, mas incomodam em certa quantia. “Um
Homem Chamado Ove” é um livro sobre seguir em frente, sobre como as pessoas
podem se transformar se tiverem outras ao redor, sobre o poder da compaixão e
da bondade sem interesses. Além disso, é um livro sobre o amor universal de
duas pessoas durante toda uma vida, coisa tão rara hoje em dia como as
habilidades descritas no início do texto.
É muito improvável que em algum
momento da vida você não tenha deparado com alguma banquinha no meio da rua ou
na frente de um bar com uma tabela cheia de números e uma pessoa riscando uma
pequena caderneta de papel. O jogo do bicho, criado no final do século 19 no
Rio de Janeiro, existe por todo o país, e, mesmo hoje ainda exibe muita força e
faturamento elevado. Uma contravenção pela lei, é suportado por governos que,
não obstante, retiram dele algum tipo de propina para consentimento, assim como
os órgãos de segurança. O jogo é o segundo maior arrecadador de apostas do país
atrás apenas da Mega-Sena e age com milhares de cambistas operando, sem pagar
impostos e fabricando impérios. O escritor Alexandre Fraga aborda esse mundo em
“Oeste – A Guerra do Jogo do Bicho”,
lançado ano passado pela Editora Record com 308 páginas. O autor tem dois
outros romances no currículo, “Quando os Demônios Vão ao Confessionário” de
2002 e “Canibal de Copacabana” de 2008, e é policial federal e bacharel em Direito.
Inspirado em fatos reais, principalmente na guerra do jogo do bicho iniciada no
Rio de Janeiro nos anos 90 com a morte de Castor de Andrade, Alexandre Fraga
amplia as linhas temporais e imaginárias criando um bom thriller policial com
drama, muita violência e algum humor. A trama inicia quando Nabor, o chefe
maior dos bicheiros do estado, sai da cadeia e começa a retomar o poder. Quando
de súbito falece, a briga pela sucessão ganha tons de sangue. Na ampliação dos
negócios para além do jogo escrito em papel (que agora é feito também em
máquinas eletrônicas), com a inclusão dos rentáveis caça-níqueis que vendem
ainda mais a ilusão do dinheiro fácil e rápido, se apresenta uma guerra sem fim
pelo poder e por territórios. Muitos dos fatos explorados em “Oeste” realmente aconteceram e os
pseudônimos utilizados no livro são facilmente identificáveis. Com os direitos
vendidos para o cinema e comparações (menos, menos) com “O Poderoso Chefão” de
Mario Puzo, a obra flui muito bem, com ritmo acelerado e excelentes personagens
como o advogado gago Estélio e o assassino de aluguel Já Morreu. Alexandre
Fraga sabe do que está falando e vai bem ao ilustrar um negócio que atua aos
olhos do povo, mesmo sendo contra a lei e não gerando frutos diretos ao estado,
sendo baseado em propinas e agrados. No entanto, bem que a revisão do livro
podia ser mais cuidadosa. Ajudaria mais.
Sites de financiamento coletivo
são atualmente grandes aliados para os quadrinhistas nacionais com vários
projetos nascendo ali. “Aurora” é
mais um exemplo disso, porém tem uma pequena diferença, uma vez que o criador
do argumento e do roteiro é o ator Felipe Folgosi. De galã jovem global dos
anos 90, esse fã de quadrinhos hoje atua em produções bem questionáveis como as
novelas “Os Mutantes” e “Chiquititas”. Com formação em Cinema e especialização
em Los Angeles, inicialmente Felipe Folgosi concebeu “Aurora” como um roteiro de cinema, só que como para filmar um
projeto com esse teor não é lá muito fácil resolveu migrar para os quadrinhos.
Com a produção do Instituto dos Quadrinhos e o apoio do crowndfunding a obra
chega às livrarias e bancas do país. Mesmo ostentando somente o nome do ator na
capa, o álbum foi adaptado por Klebs Junior que também armou os layouts para os
desenhos de Leno Carvalho. A trama é de ficção científica e apresenta nosso
planeta passando por um fenômeno que desenhará o próximo passo evolutivo da
humanidade. O protagonista é Rafael, um pescador que é absorvido por esse
fenômeno e passa a desenvolver certos poderes e habilidades. Logo o governo vem
ao seu encalço, não medindo esforços para tanto e eliminando quem se colocar no
caminho. Com uma ideia promissora para ser desenvolvida em hq’s nacionais, “Aurora” peca bastante no ritmo e na
aplicação das ideias, como a pressa desmesurada para chegar a um diagnóstico
para o personagem principal que surge tão exato e didático que não cai bem. O
uso da religião em contraponto a ciência também não funciona e outro ponto
negativo é a arte. Se nos planos mais gerais ela corresponde, deixa a desejar
em vários momentos nas feições retratadas para o momento que se apresenta,
ficando frágil a passagem de quadrinho para quadrinho. “Aurora” tem seu valor, porém exibe muitas falhas e a principal
delas é não exprimir emoção suficiente para envolver o leitor.
Nota: 5,0
O Punho de Ferro foi criado por Roy
Thomas e Gil Kane e estreou em uma revista de 1974. Foi criado para aproveitar
o sucesso dos filmes marciais da época, mas é coerente afirmar que mesmo
vivendo com o ostracismo em alguns momentos, o personagem conseguiu ir além
disso. Punho de Ferro é na verdade o empresário Daniel Rand, que junto com
heróis como Demolidor, Luke Cage e Justiceiro faz parte do universo mais urbano
da editora. Não é à toa, por exemplo, que a Netflix também irá produzir uma
série sua assim como fez com Demolidor e Jessica Jones e fará com Luke Cage. Todos
fazem parte do mesmo micro universo. A Panini Comics lança agora uma edição
cartonada com 130 páginas chamada “Punho
de Ferro: A Arma Viva – Vol. 1”, reunindo as edições de 1 a 6 de “Iron First: The Living Weapon”
publicadas nos EUA entre junho e novembro do ano passado contendo a fase
recente do personagem. Sob o comando de Kaare Andrews (de “Doutor Octopus:
Origem”) no roteiro e na arte, a história apresenta um Punho de Ferro mais fechado,
de poucas palavras e com tormentos constantes lhe tirando o sono. Recorta então
a atualidade de um ataque que sofre em seu apartamento e lhe direciona
novamente para Kun Lun, a cidade que lhe fez ser o que é, com fatos do passado
que adicionam novos elementos na origem que já conhecida. O tratamento que
Kaare Andrews dá ao Punho de Ferro é louvável e consegue o objetivo de trazer nova
vida a um personagem mal utilizado na maior parte do tempo. A arte desfocada,
escura e brutal é um bom adendo a trama. Se ainda não supera a estupenda fase
comandada pela dupla Ed Brubaker e Matt Fraction há alguns anos no mundo
pós-Guerra Civil da Marvel, tem suas virtudes e se manter a toada das primeiras
edições pode render algo muito bom no futuro.
Ano passado o diretor Stephen
Daldry de filmes como “Billy Elliot” e “As Horas” lançou sua versão cinematográfica
para o romance juvenil “Trash”.
Gravado no Brasil e com atores nacionais no elenco como Wagner Moura e Selton
Mello, o longa é adaptado da obra do inglês Andy Mulligan originalmente publicado
em 2010. Em 2013 a Cosac Naify colocou aqui esse trabalho (que ganhou
reimpressão em 2014) com tradução do escritor Antônio Xerxenesky e 224 páginas.
O livro tem como protagonista o jovem Raphael Férnandez que vive no lixão de
Behala e de lá tira o sustento em situações nada magníficas. O autor, que
também é professor, não ambienta a trama em um país específico, mas tirando
pelas suas andanças por Índia, Filipinas, Vietnã e Brasil, pode-se afirmar que
tem um pouco de cada nessa criação. Ao fazer seu trabalho revirando o lixo para
separar e revender, o personagem principal se depara com um bolsa contendo
dinheiro e mais alguns importantes papéis. O que à primeira vista representa um
grande prêmio, se revela como algo bem mais grave quando a polícia invade o
local preocupado em encontrar essa bolsa. Quando esconde da polícia esse fato e
percebe que o buraco é bem mais embaixo, Raphael se vê em uma grande aventura
junto com os amigos de lixão Gardo e Rato. Dentro desse contexto, Andy Mulligan
versa pelo caminho sobre pobreza, abuso de poder, política e desigualdade social,
usando como recurso narrativo a voz não somente de Raphael, mas de vários envolvidos
que vão assumindo os capítulos e que ajudam a dar uma boa visão ao leitor, ainda
mais com a utilização de fontes distintas para cada pessoa. “Trash”, no entanto, é apenas uma
aventura razoável, que não consegue se expandir muito do raso raciocínio e
expõe o olhar estrangeiro caricato sobre as mazelas dos países do terceiro
mundo. Sim, é repleto de boas intenções, porém fica somente nisso e não vai
muito além como leitura.
Nota: 6,0
Em 14 de novembro de 2011 o Sonic
Youth subia no palco do Festival SWU na cidade paulista de Paulínia para fazer
o último show de uma carreira de 30 anos artisticamente impecável. Ali seria a
derradeira vez em que a banda executaria canções como “Sugar Kane”, “Teenage
Riot” e “Death Valley 69’”. E é nesse show que a baixista Kim Gordon começa sua
autobiografia. De maneira triste, arrasadora e assustadoramente honesta narra
os últimos dias que culminaram na apresentação em um capítulo que é tão brusco
que a emoção toma conta. Kim Gordon é muito mais que uma música. É artista
visual, atriz, diretora, produtora, empresária. Uma mulher e tanto, mas que
como a maioria de nós pobres mortais tem dúvidas, medos, vergonhas e arrependimentos.
“A Garota da Banda” (Girl in a Band, no original) foi
publicado esse ano e sai por aqui também em 2015 pelo selo Fábrica231 da
Editora Rocco, com tradução conjunta de Alexandre Matias e Mariana Moreira
Matias e 288 páginas. O livro de Kim Gordon é como um romance torto de formação
em que o Sonic Youth é responsável por vários capítulos, mas ainda assim é
coadjuvante da vida pessoal da autora que passeia por uma Nova York que não
existe mais e por entre nomes distintos de vários setores da arte. Expondo
pensamentos sobre pessoas do meio musical como Courtney Love e, lógico, o
marido Thurston Moore, entre tantas outras, Kim Gordon apresenta ao leitor um
retrato de uma personalidade forte por mais que sempre tenha sido meio intimista.
É um retrato de uma mulher que tocou a vida em meio a um mundo e a um meio
claramente machistas, mas que se saiu muito bem. Uma mulher que optou em fazer
uma música não convencional em uma época em que, como ela própria diz no livro,
a palavra ruído era um insulto, a coisa mais desprezível que podia se usar
contra a música. “A Garota da Banda”
é um livro avassalador, para se ler mais de uma vez e depois guardar ali na
estante ao lado de “Só Garotos” da Patti Smith.
São inúmeras as guerras civis que
explodiram no continente africano nas últimas décadas. Exemplos não faltam em
países como Ruanda, Mali, Nigéria, Somália, Congo. A lista é extensa e ainda
nesse momento existem facções rivais se digladiando em uma nação do continente
enquanto o resto do mundo finge não ver. Uma história triste e complexa de se
entender, mas que geralmente tem um ditador cometendo desmandos enquanto alguma
frente rebelde denominada de libertação, salvação ou coisa do tipo busca
derrubá-lo, para que depois ao conseguir o poder pratique necessariamente os
mesmos atos.
“Beasts of No Nation” é o primeiro filme produzido pela Netflix e tem
como cenário justamente uma guerra civil dessa. Baseado no livro antônimo do
nigeriano Uzodinma Iwela lançado em 2005, o longa estreou mês passado e está
disponível na plataforma da empresa. Com isso, a Netflix dá mais um passo na
consolidação dentro de um vasto mercado que agora também abrange a produção de
filmes depois de apresentar documentários e séries, como também uma afirmação
no que concerne ao quesito qualidade, rivalizando mais do que nunca com a HBO
nessa seara.
Com 2 horas e 17 minutos o filme conta
com a direção de Cary Joji Fukunaga, que tem no currículo o bom “Jane Eyre” de
2011 e, acima disso, os oito episódios da aclamada primeira temporada de “True
Detective”. Em “Beasts of No Nation”
ele faz um grande trabalho. Com a câmera ágil, concentrada muito nas feições
dos atores e balanceando com perícia ritmo e contemplação, traz o espectador
para a tensa e dolorosa história que apresenta. Merece também destaque a edição
e montagem conjunta de Pete Beaudreau (“Margin Call – Antes do Fim”) e Mikkel
E. G. Nielsen (“Querida Wendy”).
O roteiro, também adaptado pelo
diretor, tem Agu como narrador, porta-voz e olhos do espectador. Ganês,
descoberto nas locações do filme, o jovem Abraham Attah impressiona pela
desenvoltura. Agu é parte de uma família como qualquer outra, traquina e
moleque como a idade permite. Está com os pais e irmãos no meio de uma zona de
proteção durante a guerra civil declarada em seu país (que o roteiro não
especifica qual), até que essa zona de proteção é invadida e ele vê a mãe fugir
para outra cidade e o pai, avô e irmão serem assassinados na sua frente pelas
forças do governo.
Ao fugir pela selva é encontrado
pelas tropas do “Comandante” (Idris Elba das séries “The Wire” e “Luther” dando
um show) e logo é recrutado para ser mais um soldado de guerra. De início, com
todo ódio que tem coração, Agu busca vingança, mas também um lugar para ficar,
ainda mais contra aqueles que mataram sua família. Na segunda metade do longa,
percebe que atrocidades são cometidas pelos dois lados e em uma guerra vilões
se espalham entre as fileiras, até devido a própria transformação que sofre
passando de um alegre e brincalhão garoto para mais um insano a tirar vidas da
população que paga o pato pela busca sangrenta de poder.
“Beasts Of No Nation” tem uma gama de qualidades a serem elencadas.
O drama de guerra é conciso, violento, nada apelativo ou banal. Contudo, também
explora a psique daqueles homens que se veem arremessados em uma matança sem
fim, além de criticar ações do tipo e toda política suja de interesses envolvida
nesses casos. Tecnicamente bem feito, com um diretor que apresenta um talento
maior a cada trabalho e ótima atuação da dupla principal de atores, é um filme
que representa um marco para a Netflix, e quem sabe, um pouco mais além (o
filme está cotado para o Oscar do próximo ano).
P.S: A título de curiosidade, “Beasts of No Nation” é também o nome
de um disco lançado pelo músico nigeriano Fela Kuti em 1989. Vale a
pena conhecer.
No universo dos quadrinhos é
normal que de tempos em tempos as grandes editoras busquem reinventar seus
maiores personagens, dando a esses ícones uma atualizada a fim de atingir novo
público, porém tratando isso na maioria das vezes como um projeto paralelo para
que os fãs antigos não chiem muito. O resultado de tal iniciativa oscila bastante
entre bom e ruim, o que não impede de se tentar novos projetos. Em 2012 a DC
Comics começou uma série intitulada “Terra Um”, onde a cronologia de todas as
décadas não era muito levada em conta. O primeiro a ser reformulado foi o
Superman (depois já vieram Batman e Titãs) com roteiro de J. Michael Straczynski
(da excelente “Rising Stars”) e arte de Shane Davis (Liga da Justiça). A Panini
publicou aqui em 2013 o arco inicial dessas histórias e agora em 2015 coloca no
mercado “Superman: Terra Um – Vol. 2”,
continuação dos fatos desenvolvidos no volume anterior, mas como se trata de
tramas fechadas pode ser consumido sem ter conhecimento do que veio antes. Nesse
encadernado com 132 páginas encontramos um Superman ainda inseguro com seu
lugar no mundo e sem saber exatamente o que fazer com todo o poder e como se
posicionar. No meio desse caminho de afirmação aparece o Parasita, um dos
vilões mais poderosos que o kryptoniano já enfrentou e dentro dessa ação o
roteiro ainda insere uma boa dose política e apresenta um homem de aço não tão
escoteiro como se está acostumado. Mesmo com texto do competente Straczynski e arte-final
de Sandra Hope com cores de Barbara Ciardo ajudando os limpos desenhos de Shane
Davis, parece que os envolvidos ainda não encontraram um tom para que funcione essa
repaginada. Apesar de se levar em consideração que esse “Volume II” é superior
ao antecessor, ainda assim temos apenas uma mediana aventura, que não
acrescenta nada ao personagem e é plenamente esquecível depois de algumas horas.
Nota: 5,0
A adolescência não é tarefa das
mais fáceis para qualquer um, por mais que ofereça em contrapartida boa gama de
alegrias e lembranças que vão ser levadas durante toda a vida. Imagine então
ter 13 anos e morar em uma pequena cidade que não oferece opções de
entretenimento quando de repente sua mãe resolve se mandar com outro cara lhe
deixando somente com o pai, um pai que praticamente não para em casa e vive
viajando a trabalho. É assim que se encontra Rosie, a protagonista da graphic
novel belga “O Muro” (Le Muret, no original). Publicada no ano
de 2013 lá fora recebe edição nacional esse ano através da editora Nemo com 192
páginas e tradução de Fernando Scheibe. “O
Muro” é o primeiro projeto em quadrinhos da escritora infantil belga Céline
Fraipont e conta com a arte do argelino Pierre Bailly em preto e branco.
Ambientada no final dos anos 80, o roteiro navega por todas as ânsias de uma
garota que de repente se vê sozinha no mundo e que entre descobertas e
desilusões vai se acertando do jeito que dá. A trama apesar de delicada não é
demasiadamente juvenil e explora drogas, álcool e sexo envolvidos no traço
bastante peculiar de Pierre Bailly que usa e abusa de sombras e escuridão em
quadros dos mais diversos tamanhos, em que consegue repassar ao leitor a
sensação de estranhamento e tédio que assola a personagem principal. Ao redor
disso Céline Fraipont enxerta muita música e discos, como a coletânea “Ramones
Mania” dos Ramones ou “Three Imaginary Boys” o registro de estreia do The Cure,
fazendo com que a música sirva como coadjuvante e desafogo da história. “O Muro” trata do crescimento e da
formação de uma pessoa perante adversidades, um tema que já foi usado
largamente por toda a arte, no entanto, aqui esse tema é tratado com habilidade
e o resultado disso é um trabalho com várias qualidades que merece ser
conhecido.
“Eu Sou Spartacus” é o segundo disco da
banda paraense Turbo, trio formado por Camillo Royale nas guitarras, violões e
vocal, Wilson Fujiyoshi no baixo e Netto Batêra na bateria. O álbum que saiu
esse ano de maneira independente vem de uma longa gestação que remonta inicialmente
a 2012. Gravado em Gotemburgo na Suécia por Chips Kiesbye, produtor de bandas
como o Hellacopters (influência confessa do trio paraense) e remasterizado por
Henryk Lipp, o registro apresenta oito faixas que exibem toda o poder do grupo.
Com as guitarras em primeiro plano conduzindo uma cozinha eficientíssima, temos
um disco ganchudo, vigoroso e com energia explodindo pelos cantos. O bom humor,
um dos pontos fortes da banda, continua em alta como atesta “Fã #1”, onde a
letra destrincha uma fã que sabe todas as músicas de todas as bandas, ou “Gibson”,
que retrata o sonho maior de ter uma guitarra Gibson Les Paul Custom Black,
independente do que os outros acham. As guitarras dão o tom das “rajadas” - que
é o como o grupo nomeia suas apresentações - em músicas como “Já” e “Mais Além”,
esta última bastante pessoal com versos sobre resistência e falta de valor.
Some-se a elas o riff garageiro e possante de “Elis”, a balada torta de “Bem
Vinda”, o powerpop de “Pilar” (com letra fantástica citando o “Ok Computer” do
Radiohead) e o rock acelerado, quase stoner, de “Calor Senegâles” sobre a
questão climática da região. Tudo isso faz de “Eu Sou Spartacus” um compêndio bastante real do que é o Turbo, do
que a banda se prontifica a ser, conseguindo transpor o poder do ao vivo para
as gravações, o que nunca é tarefa fácil. “Eu
Sou Spartacus”, acima disso, é um disco à altura de Camillo Royale, daquilo
que se espera dele, um ídolo da cena local e um dos caras mais talentosos da
região.
O ano era 2006 e o músico
paraense Klebe Martins conseguia enfim lançar o primeiro trabalho solo com o
nome de Telesonic. “Canções de Bolso” trazia um folk-rock aliado com pop que
foi bem recebido pela crítica e público da região. Quase dez anos depois é a
vez do sucessor ganhar vida. “Pequenas
Juras de Amor...à Vida” tem produção própria, nove canções e vai além da
estreia, inserindo sonoridades mais amplas e outras influências, sem contar o
fato de uma produção mais cuidadosa e trabalhada. Novamente com participações
especiais pelo caminho, como as do casal Joel Melo e Susanne May do Suzana
Flag, Klebe Martins outra vez lança um álbum digno de nota, que merece muito ser
ouvido. Foram anos de trabalho na lapidação e aperfeiçoamento de cada canção,
aqui e ali mostradas ao público em alguns shows, um processo de criação
elaborado, novamente com forte apego para com as melodias e zelo nas letras,
que dessa vez aparecem mais positivas, mais contemplativas, porém ainda flertando
com o cotidiano e apresentando boas tiradas. Da grudenta “Manifesto II” até o
dedilhado da suave e terna “Nas Nuvens”, o trabalho exibe várias facetas, como
o folk-pop de “Dois Pares”, o trompete de “Tanto Faz” ou o pop pegajoso de “Balada
do Retirante”. Dentro da já citada sonoridade mais ampla, destaque para o leve
suingue e guitarras de “Não Sei Andar Sozinho”, ou o balanço de “Desafeto”,
também com presença marcante da guitarra e backing vocals chicletudos ao fundo.
O amor, presença marcante no álbum inaugural, aparece com louvor na perfeitinha
e crítica “Sétimo Céu”, assim como a questão “vida que segue” (outra temática
explorada antes) se apresenta nos violões de “Bem Mais Simples”, reafirmando o cotidiano
e rotina tão bem explorados pelo músico. “Pequenas
Juras de Amor...à Vida” é um disco prazeroso de ser escutado, com coisas
simples de se ouvir e que carregam em si o poder de melhorar uma parte do seu
dia.