quinta-feira, 30 de outubro de 2014

"Miss Violence" - 2014

A crise financeira que o mundo atravessou em 2008 deixou sérios danos em várias nações. A Grécia foi uma dessas nações e em 2010 teve um agravamento das consequências desse período e navegou em uma nova crise que resultou em pedido de ajuda bilionário para a União Europeia, além de medidas internas cortando gastos públicos, aumentando impostos e instituindo reformas diversas. É esse país que serve de ambiente para o filme “Miss Violence” que estreou esse ano no país, porém é de 2013.

“Miss Violence” é um filme grego de 98 minutos dirigido por Alexandros Avranas (de “Without”), que também assina o roteiro em parceria com Kostas Peroulis. O longa teve uma boa passagem em festivais ano passado, sendo premiado em alguns como o de Estocolmo (melhor roteiro) e Veneza, que deu a Alexandros Avranas o prestigiado Leão de Prata de melhor direção, além da premiação de melhor ator para Themis Panou. A película também passou por aqui antes de ir para o circuito comercial na 37ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

A cena de abertura do filme é uma festa de aniversário para uma garota de 11 anos que com a família dança meio desajeitada ao som de “Dance Me To The End Of Love” do Leonard Cohen. Logo na sequência essa mesma jovem com um leve sorriso nos lábios se dirige a sacada do apartamento e salta para a morte, causando assim um choque inicial ao espectador que apresenta nos primeiros cinco minutos o que pode-se esperar dali em diante. A câmera faz uma pequena viagem até mostrar o corpo da menina estendido em meio a muito sangue.

A família retratada é composta por Themis Panou, que faz o papel de chefe dessa casa também habitada pela esposa, duas filhas, um neto e uma neta. Após o suicídio, a preocupação passa não somente pela tragédia em si, mas também pelo fato da diminuição da renda familiar que sofrerá um abatimento do benefício dado pelo governo. No cenário difícil em que o país se encontra isso realmente pesa para o personagem de Themis Panou. Junte-se a isso uma nova gravidez da filha mais velha (de pai desconhecido como os anteriores) e o medo do serviço social cortar todos esses benefícios.

Esse panorama primário aponta para um drama de sobrevivência, mas nem de longe é possível imaginar o rumo que a trama percorrerá e a quantidade de sordidez que será demonstrada na tela. A câmera de Alexandros Avranas opta em muitos enquadramentos e cenas com poucas palavras e assim apresenta uma família sufocada vivendo entre o medo, a conivência e a falta de opção. O roteiro é elaborado com o intuito de provocar, isso fica bastante claro devido as opções tomadas na parte final, contudo isso não é gratuito e condiz muito bem com a dosagem gradual que o nível de brutalidade vai se apresentando.

As decisões tomadas pelo personagem de Themis Panou não são justificáveis em momento algum, nem pela crise existente, já que essas decisões são tomadas há muitos anos. “Miss Violence” é duro, frio e isento de moralidade. É um filme que agride e causa desconforto a quem assiste. Guarda comparações com trabalhos como “Old Boy” do sul coreano Park Chan-Wook, não pela temática envolvida, mas pelo grau de desumanidade exercida. O longa de Alexandros Avranas é mais um exemplo do bom momento que vive o cinema grego e revela um promitente cineasta.

Nota: 8,5

Assista ao trailer oficial (não achei legendado em português):

terça-feira, 28 de outubro de 2014

“O Quinto Beatle – A História de Brian Epstein” - Vivek J. Tiwary, Andrew C. Robinson e Kyle Baker

Quem foi o quinto beatle? Stuart Sutcliffe, o amigo de John Lennon que tocava baixo nos primórdios da banda e faleceu misteriosamente em 1962? George Martin, o produtor que foi fundamental nos discos do quarteto? Pete Best, o primeiro baterista do grupo que saiu em 1962 para a entrada de Ringo Starr? Bom, para Paul McCartney, não foi nenhum desses. Em 1999 ele afirmou que “se existiu o quinto beatle, ele foi o Brian”.

O Brian em questão é Brian Epstein, nascido em Liverpool em 1934 e falecido em 27 de agosto de 1967, que de gerente de uma conceituada loja de discos chamada NEMS, passou para empresário dos jovens garotos ingleses que sob o seu comando conquistariam o mundo e ficariam para sempre marcados na história da música dali em diante. Brian Epstein foi essencial para esse sucesso e em 10 de abril desse ano entrou para o Hall da Fama do Rock And Roll na categoria de Não Artista.

Para os conhecedores da história dos Beatles a importância de Brian Epstein já é devidamente reconhecida, todavia ainda faltava uma obra recente que deixasse isso mais claro e cobrisse principalmente a sua vida pessoal de maneira mais abrangente. Mesmo facilmente correlacionado com adjetivos como visionário e empreendedor, ele tinha sérios problemas de confiança e amargava um profundo deslocamento social. Era judeu (ainda com a segunda guerra viva no cotidiano) e homossexual (quando essa opção era crime na Inglaterra).

“O Quinto Beatle – A História de Brian Epstein” foi lançada pela Editora Aleph esse ano e adiciona na balança esses dois lados: o idealismo e a insatisfação pessoal. O roteiro de Vivek J. Tiwary (escritor de espetáculos de sucesso da Broadway em sua primeira aventura nos quadrinhos) contorna isso de maneira satisfatória e começa mostrando um pouco da vida anterior do empresário, suas predileções e medos, passa pela maneira que ele conheceu os Beatles, o primeiro show visto no lendário Cavern Club, até chegar ao estrelato e ao reconhecimento mundial.

Vivek J. Tiwary usa de uma livre narrativa para apoiar fatos da vida do personagem principal e adiciona tons poéticos e fantasiosos que juntos com a bonita e esperta arte repleta de cores e variações de estilo dão um resultado interessantíssimo ao álbum. Essa arte que durante quatro anos foi trabalhada por Andrew C. Robinson (Starman) e Kyle Baker (O Sombra) resplandece em boa parte das 168 páginas espalhadas em formato grande (31 x 21cm). O resultado é uma das mais bonitas graphic novels dos últimos anos.

“O Quinto Beatle – A História de Brian Epstein” apresenta vários textos como adendos e esboços comentados dos artistas, assim como explicações dos direcionamentos utilizados pelo próprio autor que deixou alguns fatos de lado para compor a narrativa, o que não chega a ser problema, pois se referem a pequenas licenças. Licenças que geram momentos interessantes como a conversa de Epstein com Ed Sullivan (apresentador de tevê) ou com o Coronel Parker (empresário de Elvis Presley) e mostram uma vida profícua amarrada entre a alegria e a dor, entre a felicidade e a angústia, ainda que muito curta.

P.S: Brian Epstein faleceu aos 32 anos depois do lançamento do clássico “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” e não viu os “seus garotos” caminharem para o final da banda, como também não presenciou as disputas que se seguiram.

Nota: 9,0

Textos relacionados no blog:

- Quadrinhos: “O Pequeno Livro dos Beatles” – Hervé Bourhis
- Shows: Paul McCartney – Estádio do Morumbi(SP) – 21.11.2010

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

"Gilberto Bem Perto" - Gilberto Gil e Regina Zappa

Gilberto Gil é uma entidade única na música brasileira, isso não tem muito como se discutir. Independente do fato de se apreciar ou não a música do baiano, sua relevância e influência é uma certeza. Político, pop, regional, musical, esotérico, visionário, apaixonado, contestador, polêmico, conflituoso, global. São algumas das referências que podem ser direcionadas a sua personalidade, que assim como as frases que profere atingem níveis extremos entre determinado ponto de vista e outro radicalmente oposto, mas de alguma maneira, complementar.

No ano passado a Editora Nova Fronteira colocou no mercado uma biografia com 400 páginas, que anteriormente estava prevista para ser publicada em 2012 a fim de comemorar os 70 anos de vida do artista. “Gilberto Bem Perto” é uma biografia autorizada escrita pela jornalista Regina Zappa (a mesma de “Para Seguir Minha Jornada” sobre Chico Buarque), em parceria com o retratado. Tem a missão de cobrir uma trajetória bem extensa, repleta tanto de percalços quanto de glórias e conquistas.

Gilberto Gil é múltiplo, mutável. Como bem disse um de seus filhos referenciado uma grande canção dele, Gil é como um abacateiro, que amanhece tomate e anoitece mamão. Essa diversidade de pensamento e de direcionamento, talvez seja a parte mais complexa para se cobrir em um livro sobre sua vida e trabalho. Em bom percentual, Regina Zappa consegue abranger isso, porém deixa muito a desejar em outros aspectos, principalmente no que tange as polêmicas e equívocos, sendo o tom sempre superficial e bastante parcial.

Isso logicamente passa pelo fato de ser uma biografia autorizada ditada pelo próprio Gil e complementada com depoimentos de amigos e contemporâneos como Caetano Veloso, Hermano Vianna, Rita Lee, Jorge Mautner, Fernanda Torres e José Miguel Wisnik. A redundância de temas também incomoda, como no capítulo “Gil a Mais” em que várias coisas já mencionadas ganham nova redação (um pouco diferente) adicionadas a trechos de discursos proferidos em momentos específicos quando era Ministro da Cultura do Presidente Lula.

“Gilberto Bem Perto” é pela parcialidade já citada, e por ser mais ou menos leve e sempre benigno, uma biografia mais indicada para quem conhece pouco sobre a vida e trabalho do artista. É como um extenso perfil feito pela assessoria de imprensa pessoal em várias partes, mas serve para mostrar o menino que desde muito pequeno já dizia para a mãe que queria ser “musigueiro” e que da Bahia pegou régua e compasso para encantar o mundo, com sua forma especial de tocar violão e maneira peculiar de enxergar as coisas.

O livro narra a infância no interior da Bahia, a ida para Salvador e depois para São Paulo já formado em administração de empresas para trabalhar na Gessy Lever, sendo preparado para o mundo executivo até desistir de tudo e escolher a música. Narra a influência primordial de Luiz Gonzaga, a descoberta de João Gilberto e depois de Beatles, Jimi Hendrix, Jackson do Pandeiro, Bob Marley e tantas outros. Narra a relação extraordinária com Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia, Elis Regina e Jorge Mautner. Narra o tropicalismo.

E como toda biografia (mesmo as não tão boas) apresenta alguns ótimos casos, como a composição de “Aquele Abraço” e de “Drão”, como também a primeira vez que Baden Powell o viu tocar, dizendo imediatamente para Edu Lobo que estava ao lado a seguinte frase: “olha outro diferente aí”. Sim, Gil é diferente e “Gilberto Bem Perto” demonstra um pouco disso. Algo que se sobressai bem na obra é quantidade de fotos espalhadas pelas páginas tanto em preto e branco como coloridas, oriundas de várias fases da carreira.

O parceiro, poeta e letrista Torquato Neto disse certa vez que “há várias maneiras de se cantar e fazer música brasileira. Gilberto Gil prefere todas.” Nada mais definidor. Por isso, ele merecia um retrato melhor, mais completo e neutro. Porém, biografias autorizadas não tendem muito a essa neutralidade, infelizmente. E Gil, sendo o Ministro da Cultura que ficou marcado pelo Creative Commons, paradoxalmente se envolveu com o trágico movimento “Procure Saber” que em linhas gerais versa sobre a proibição de biografias não autorizadas. Talvez, só talvez, se assim este “Gilberto Bem Perto” fosse composto teria um resultado final melhor, fazendo jus ao cracaço que Gil foi (e é) dentro da música.


Nota: 6,0

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

"Justiceiro Noir" - Frank Tieri, Paul Azaceta e Antonio Fuso

A vingança é uma espécie de justiça selvagem, escreveu o filósofo e escritor inglês Francis Bacon em meados do século XVII. Essa frase pode ser tranquilamente direcionada a Frank Castle, mais conhecido como Justiceiro, um dos personagens mais controversos dentro do Universo Marvel. Vingança é o que moveu inicialmente esta ambígua figura que depois a converteu em um deturpado senso de honra e de justiça, que inegavelmente o transforma em um clássico anti-herói.

Criado nos anos 70, o Justiceiro percorreu altos e baixos nos quadrinhos, mas mesmo assim se tornou uma peça importante do mundo a que pertence. Entre outubro de 2009 e janeiro de 2010, a Marvel também resolveu incluí-lo dentro da série intitulada “noir”, onde nomes como X-Men, Homem-Aranha, Homem de Ferro e Demolidor (o melhor resultado obtido) já haviam marcado presença. A Panini Comics publicou aqui no ano passado um encadernado juntando as quatro edições no ano passado, usando o mesmo molde dos demais.

A trama criada por Frank Tieri (Wolverine, The Darkness) atravessa as décadas de 1910, 1920 e 1930, mas se desenvolve realmente em 1935 na cidade de Nova York. Usa personalidades verdadeiras do período para dar mais substância a história do jovem que perde o pai e com o decorrer do tempo passa a percorrer criminosos sem perdão, a fim de vingar essa morte. Assim como uma novela transmitida na cidade pelo rádio sai pelas ruas caçando crimes e bandidos, tudo isso envolto a uma atmosfera sombria habilmente criada por Paul Azaceta e Antonio Fuso.

Quem já está habituado as histórias de Frank Castle não gostará tanto de “Justiceiro Noir” (a não ser que seja um fanático). Mesmo com a utilização dos vilões Retalho, Russo e Barracuda para uma melhor ambientação, o roteiro de Frank Tieri é confuso, pouco violento (para os padrões do protagonista) e não explora tanto alguns pontos fortes do personagem como a confiança e a audácia. Para novatos talvez agrade mais, até mesmo por conta da formidável arte que resulta na melhor parte desta minissérie.

Nota: 5,5

Textos relacionados no blog:

- Quadrinhos: “Demolidor Noir” – Alexander Irvine, Tomm Coker e Daniel Freedman

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

“A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves” - Joca Reiners Terron

Um escrivão de polícia sexagenário, solitário, insone, acima do peso e cheio de manias e devaneios, que depois de um relacionamento fracassado e de um tempo vivendo no exterior, mora agora com o pai, um judeu que chegou ao Brasil antes da segunda guerra, casou com uma negra (para cólera geral da sua comunidade) e montou uma mercearia para sustento da família, mas, que neste momento, sofre de demência e precisa de cuidados. Esse escrivão é o narrador do romance “A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves” do cuiabano radicado em São Paulo, Joca Reiners Terron.

Lançado ano passado pela Companhia das Letras esse é o sexto romance do escritor e apresenta 176 páginas. O título, por si só, já chama bem a atenção, mas isso não é exatamente uma novidade para o autor, é só dar uma olhada nos seus livros anteriores. Nessa obra específica ele mistura suspense, literatura policial e um bom quinhão de terror dentro da capital paulista, em sua maior parte no tradicional bairro do Bom Retiro, um bairro grande, com forte característica comercial (é lá que fica a famosa rua José Paulino) e multicultural, com coreanos, judeus, gregos e bolivianos transitando pelas ruas.

A narrativa de Joca Reiners Terron continua perseguindo o não convencional, o incomum. E em “A Tristeza Extraordinária do Leopardo-das-Neves” essa opção obtém um elevado resultado, podendo até ser classificado como o melhor livro da carreira. Personagens curiosos são criados, como o escrivão, além de um deslocado jovem entregador de mercadinho, um taxista apaixonado por cães de um modo violento e irracional e, o principal destaque, a Sra. X que cuida dentro de uma casa quase abandonada de uma pequena pessoa (denominada como “criatura”) que vive com todas as partes do corpo cobertas para esconder a aparência.

Do outro lado deste exótico universo imaginado (separado, porém ao mesmo tempo ligado), está o animal que empresta o nome ao título e vive no zoológico paulista. Um animal solitário (assim como o narrador), mortífero, repleto de folclore e lendas ao seu redor, em risco constante de extinção e tendo como habitat natural uma região bem diferente da nossa. E que passa por uma situação bem delicada.

A maneira que Joca Reiners Terron une essas figuras tão peculiares e esses dois cenários distintos (quando analisados friamente) é louvável e muito hábil. Ali escondido no meio das frases também insere leves críticas ao preconceito, a xenofobia, a mesquinhez humana e a sociedade de modo geral, principalmente no trato aos viciados em crack. Isso, somado não só ao fato de sair alguns (bons) passos longe do usual, como também por deixar a trama em um constante crescimento, faz da obra algo bem recomendável.

Nota: 8,5

Twitter do autor: http://twitter.com/jocaterron

Textos relacionados no blog:

- Literatura: “Do Fundo do Poço Se Vê a Lua” – Joca Reiners Terron

domingo, 5 de outubro de 2014

"Diário de Inverno" - Paul Auster

A cada ano que passa percebe-se que fica mais comum para cada um se pegar pensando na idade, no passar do tempo, nas escolhas feitas e no que ainda virá pela frente. Mesmo aqueles que enxergam sempre o futuro, tendem a pelo menos durante um breve momento tecer considerações mentais sobre esses temas, essas questões. É normal, é inerente ao processo de envelhecer. Em maior ou menor proporção isso acontece ou acontecerá no devido período (para aqueles que ainda são muito jovens).

O escritor Paul Auster passou incisivamente por isso em 2011, então com 64 anos, e o resultado foi mais um livro em uma admirável carreira. Esse livro é “Diário de Inverno” (Winter Journal, no original) que foi publicado nos Estados Unidos em 2012 e ganha agora edição nacional pela Companhia das Letras. O trabalho tem 214 páginas e tradução de Paulo Henriques Britto e mostra um autor completamente tranquilo em se despir plenamente, em se desnudar sem medo na frente do público.

Para quem já conhece livros anteriores do autor, “Diário de Inverno” tem sentido em explicar agruras, realizações e fatos marcantes da sua vida. Para quem ainda não leu nada escrito por ele (uma lacuna que necessita ser preenchida, cabe ressaltar), o livro é uma declaração poética, gradualmente bem-humorada e com uma boa carga de dor e de arrependimento que serve para validar toda uma existência, como também é uma reflexão sobre o envelhecimento, sobre a afirmação de certezas e o surgimento de dúvidas.

Paul Auster já havia feito algo do tipo em seu primeiro livro de prosa publicado em 1982, nomeado “A Invenção da Solidão”. Nele, refletia sobre o pai (e seu falecimento) e sobre o filho, além de outros ensaios. Nessa nova coleção de memórias o foco se concentra mais na mãe e na esposa (a também escritora Siri Hustvedt). Para isso regressa a infância e passa por baques, quedas e cicatrizes dessa época da mesma maneira que viaja para episódios mais recentes como o acidente de carro em 2002 que quase vitimou a esposa e a filha com ele ao volante (e que o atormenta até hoje).

A maneira encontrada para contar esses fatos reais é como se o autor estivesse conversando consigo mesmo, como em um exercício de meditação e ponderação. Um estilo que pode até sugerir ficção se o leitor se descuidar um pouco. Paul Auster aborda levemente questões como preconceito, aborto e política, acrescentando a isso suas experiências pessoais. Experiências que passam igualmente pela virgindade perdida no Queens, pela época em Paris nos anos 70 convivendo entre o amor e as prostitutas, pela carreira de diretor de cinema, além dos diversos lugares em que morou (mais de 20) e que rememora de maneira bem distinta e amável durante as páginas da obra.

O que impressiona em “Diário de Inverno” não é somente a costumeira destreza que o autor tem em posicionar palavras no papel, mas a escolha em transportar de modo bem peculiar histórias pessoais e visões sobre si mesmo, como essa: “uma pessoa perfeita e machucada, um homem que tem uma ferida aberta dentro de si desde o início (senão, porque teria passado toda a vida adulta sangrando palavras numa página?)”

O tempo não compra passagem de volta, Paul Auster sabe disso, e apesar da finitude da vida lhe assustar vez ou outra, ele transforma isso em mais um bonito livro e mostra que no seu caso a velhice está longe de ser um naufrágio.

Nota: 8,5


Textos relacionados no blog:

- Literatura: “A Trilogia de Nova York” – Paul Auster

- Literatura: “Sunset Park” – Paul Auster

sábado, 4 de outubro de 2014

"The Rover - A Caçada" - 2014

O diretor australiano David Michôd provocou uma ótima primeira impressão na sua estreia em um filme de ficção. “Reino Animal” de 2010 é um trabalho intenso, potente, com muita tensão inerente e um teor de desalento na violência embutida. Chegou até mesmo a levar uma (merecida) indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. “The Rover – A Caçada” (somente “The Rover”, no original) é a película após essa estreia e dessa vez além da direção, o roteiro também é de autoria dele.

O roteiro é adaptado de uma história do ator Joel Edgerton (de “Guerreiro” e que trabalhou com o diretor em “Reino Animal”) e se ambienta em um mundo levado a bancarrota quase plena dez anos antes. O motivo que levou a essa quebra não é explicado no longa, não se sabe realmente as suas razões. Mas é nesse cenário que se inicia o filme e é nele que encontramos Eric (Guy Pearce de “Amnésia”, e que também havia trabalhado anteriormente com Michôd), tomando um café em uma birosca praticamente no meio de um deserto.

Com um olhar que mistura cansaço, desânimo e tédio, Eric ouve seu carro sendo roubado do lado de fora. Quando chega correndo ao local o trio comandado por Henry (de “Argo”) já segue estrada adiante. No entanto, a picape que eles deixam para trás dá para ser utilizada, apesar de ter sofrido um acidente. Assim, a perseguição que dá nome ao filme tem seu começo, deixando no ar a pergunta lógica e clara de porque Eric foi atrás do carro, já que o outro funcionava também. Uma pergunta que será respondida só no final e não de modo muito satisfatório.

Durante a perseguição, entra no caminho do personagem principal o irmão de Henry, Rey (Robert Pattinson, o ídolo teen da saga “Crepúsculo”) todo quebrado e machucado. Ele se junta nessa caçada pelos próprios motivos, lá não tão inteligentes. Com uma paisagem desértica impressa durante os pouco mais de 100 minutos do filme, “The Rover – A Caçada” apresenta figurantes destroçados, sujos, com medo e pânico instalado nos rostos. De outro lado, insere uma força de segurança (militares? mercenários contratados?) que não está nem aí para a situação e só quer fazer a obrigação que lhes foi passada e receber o dinheiro.

Em “The Rover – A Caçada” fica nítido o talento de David Michôd para situações de violência, situações em que o limite humano já foi ultrapassado e não há mais lugar para tolerâncias e compaixões. No entanto, apesar da boa atuação de Guy Pearce e de Robert Pattinson (esse mostrando que pode ir além do que já conquistou em termos de qualidade), o filme não consegue deslanchar, nem surpreender de fato o espectador. O ritmo lento e compassado usado para contrapor a brutalidade em cena prejudica mais do que ajuda e transforma a obra em um trabalho bem inconstante.

P.S: O filme já está disponível em DVD.

Nota: 6,5

Textos relacionados no blog:
- Cinema: “Reino Animal” - 2010

Assista a um trailer legendado: