Na sua nona edição o Festival Se
Rasgum mudou o período de realização. Do final do ano se transportou para o
meio de agosto, mais uma das muitas alterações sofridas durante os anos. O
processo constante de evolução para tentar ajustar tudo da melhor maneira possível
continuou, mesmo que com alguns deslizes. Se manteve a ideia de espalhar a
programação em vários dias e locais, com a redução do domingo na agenda e a
manutenção da quarta em um teatro e a quinta ao ar livre gratuitamente na
Estação das Docas. A sexta e o sábado continuaram no formidável espaço do
Hangar.
Os deslizes citados residem basicamente
nos atrasos de sexta e sábado (este último começou na hora, mas foi se
defasando depois), que fizeram com que os shows do Vanguart e do Arnaldo
Antunes previstos para uma e meia acontecessem próximos das três da manhã. Um
dos pontos altos da edição do ano passado foi justamente a falta de atrasos.
Outro ponto negativo foi o acesso ao palco secundário (deck). Com atrações de
apelo considerável junto com o fato do público em bom percentual se dirigir
para lá para fumar, o acesso ficou complicado e algumas pequenas decisões como uma
colocação diferente do bar poderia ter ajudado mais nisso. Ver alguns shows
exigiu certo perrengue que contrastava com o conforto do palco principal. A
maratona de dez bandas também poderia ser reduzida em pelo menos uma por dia
para facilitar as coisas (e isso não faria definitivamente falta alguma).
Nesses dois últimos casos, tudo indica que o Festival ficou grande demais (via
a quantidade de público presente) e a solução para o palco secundário deve ser
repensada para 2015.
No mais, tivemos ótimos shows
divididos pelos quatro dias em um festival que o astral parece melhorar a cada
ano. A praça de alimentação e a feirinha melhoraram mais (ainda que possa ser
melhor ainda) e o acesso continuou tranquilo para todas as instalações. A
escalação musical, matéria prima principal, mais uma vez privilegiou a
diversidade, o que é sem dúvida alguma a grande sacada do evento, sempre
dosando muito bem grandes nomes nacionais com outros alternativos e/ou
obscuros, sem esquecer da adição da música paraense em grandes doses.
Abaixo falo um pouco de cada dia
e dos shows que vi:
Dia 1 – 20 de agosto – Quarta – Teatro Margarida Schivasappa
(Centur)
O festival iniciou com o show da paraense
Camila Honda lançando o primeiro disco e seu pop, poses e danças fofinhas,
apoiada em uma hábil banda composta por Léo Chermont e Arthur Kunz (Strobo),
Marcel Barreto e Mauricio Panzera, mas que acaba não rendendo tudo que se
espera dela, ficando limitada pela proposta sonora.
Na sequência veio Antonio Novaes,
também mostrando as músicas do primeiro trabalho solo. Quem já conhece o
trabalho do músico dos tempos da banda A Euterpia se sentiu em casa, já que seu
trabalho solo é uma extensão imaginável dessa época. As experimentações sonoras
e fonéticas continuam e se ampliam, com um duelo feminino no vocal (Cacau
Novais foi essa contraparte) e a adição de um trio de metais. Arrigo Barnabé,
erudito, música paraense, Itamar Assumpção, jazz e latinidade. Tudo isso você
encontra na música de Novaes. Foi um show bem interessante que contou até com
uma versão de “Dentro da Caixa” da sua ex-banda.
Fechando o primeiro dia, o gaúcho
Nei Lisboa subiu com um trio de comparsas na bateria/percussão, guitarra e
teclados, que adicionados ao seu violão promoveram um dos grandes shows do
festival. Talvez tenha funcionado mais para quem já conhecesse as canções e o
trabalho, mas mesmo assim foi quase impecável. Nei Lisboa, que ali pelo final
dos anos 80 podia ter entrado no rol dos grandes da mpb se assim tivesse quisto,
continua em boa forma. Entre as boas composições do disco “A Vida Inteira” do
ano passado, entrecortou pequenos clássicos pessoais como “Baladas”,
“Faxineira”, “A Fábula (Dos Três Poréns)", “Telhados de Paris”, “Verão de
Calcutá” e “Relógios de Sol”. Bem bonito de se ver. E de se ouvir.
Dia 2 – 21 de agosto – Quinta – Estação Das Docas
O segundo dia foi ao ar livre no
complexo da Estação das Docas com a baía de Guajará como testemunha. Clima leve
e solto no ar, com uma parte do público que não é usual ao evento mas que
interagiu e se entregou da maneira que pode.
Começou com o show da banda
instrumental paraense Ultranova, que mesmo qualificada tecnicamente produz um
som chato e sem graça alguma. Completamente passável. Depois foi a vez dos
cariocas do Biltre que também não disseram muita coisa. Som datado, com humor
forçado e brincadeiras de palco beirando o ridículo. Foi só com a entrada da
Camarones Orquestra Guitarrística de Natal no palco que a quinta começou musicalmente
(mesmo que em volta a festa já tivesse começado bem antes). Show forte,
poderoso, um instrumental funcional e enérgico que convenceu até quem não gosta
de rock. Para encerrar a noite, foram os pernambucanos da Orquestra Contemporânea
de Olinda que subiram ao palco. Quem já viu algum show da banda sabe do poder
dela ao vivo. E em Belém não foi diferente. Fez todo mundo dançar, da criança
ao velhinho, do indie ao bregueiro, do chato a miss simpatia. Uma apresentação
digna de uma nota altíssima, que serviu para deixar todo mundo feliz e
preparado para as missões que se avizinhavam para os próximos dias.
Dia 3 – 22 de agosto – Sexta – Hangar
Os paraenses da República
Imperial abriram os serviços na sexta, já com um bom atraso. E a mistura de
ritmos e poesia que o grupo ambiciona fazer é legal e tal, mas completamente
esquecível e esbarra na pura pretensão em diversos momentos.
O Aeroplano subiu logo após e
assim como cresceu muito em disco, também fez isso no palco. O show agora é
mais potente, com mais interação com o público e mais harmonia entre as faixas.
Isso ficou claro em “Pra você, solidão” que foi executada durante uma pequena
pane na iluminação e contou com vários celulares dos presentes iluminando o
palco. Bonitaço. Músicas do excelente novo trabalho funcionaram muito como
“Bazar”, “Em Defesa da Família” e a faixa título. Valeu bem.
O Meio Amargo projeto com cara
folk do músico Lucas Padilha surpreendeu na sequência. Com uma banda de apoio
com os pés fincados no rock, apresentou suas canções com vigor e uma roupagem
que a cada passagem escancarava mais ainda o sorriso dos presentes. A melhor
surpresa do festival, tranquilamente.
Os cariocas malucos e perturbados
do Gangrena Gasosa vieram na sequência e promoveram o seu saravá-metal com
competência, galhardia e muita porra-louquice. Uma das grandes exibições do
festival. Divertida e impetuosa, assustou os mais incautos e causou muito, mas
muito barulho para alegria da maioria. Showzão.
Não vi o Aldo The Band (e não me
arrependo), então a sequência foi preenchida pelo Acabou La Tequila e sua
mistura de rock, ska, reggae, dance e pop, com letras espirituosas. Foi bacana
ver no palco Kassin, Nervoso, Renatinho e Barba, mandando versões para “Kung
Fu”, “Som da Moda”, “Eu Era Pop”, “Tekila Boogaloo” e “Biscoito”. Tudo fluiu
muito bem, apesar do envolvimento da banda não ser lá aquilo que se esperava em
cima do palco. Mesmo assim, valeu a pena.
Depois foi a vez do Félix Robatto
jogar em casa, o que por si só já trazia certa tranquilidade de uma
apresentação alegre e bacana. E foi assim que ocorreu. Contou ainda com a
participação da Lia Sophia nas músicas finais e se transformou em um dos
melhores da noite. Altamente recomendável.
Após isso, o capixaba SILVA subia
ao palco principal e a pergunta era: Que show veremos? O insosso e monótono? Ou
o melódico e gracioso? Para o bem dos presentes foi a segunda opção que veio.
Com a banda (mas sem o naipe de metais que lhe acompanhou no Lollapalooza desse
ano) e visivelmente emocionado em alguns momentos emendou belas canções e fez
um show tocante. “2012”, “Janeiro” e “12 de maio” soaram magníficas e
encantadoras. Não era de se esperar tanto.
O mestre Gerson King Combo subiu
na sucessão e fez um show de maior valor histórico do que necessariamente com
uma qualidade alta. É daqueles shows que vale a pena ter visto por ser o
artista quem é, sua importância e coisas do tipo. Mas com muitas covers no meio
da apresentação é mais um baile, uma festa, do que um registo de trabalho. Funciona?
Sim. Mas nada muito distante disso.
Às 3 da manhã o Vanguart aparecia
para encerrar a noite no meio de gritos ensandecidos de fãs para Hélio Flanders.
Vi umas 5 músicas apenas, mas desse pouco que vi dá para perceber que a banda é
outra, com nova identidade e segurança e sem a maior parte da afetação de
outrora. Queria ter visto mais, porém o cansaço já era dono e senhor do corpo
nessa hora.
Dia 4 – 23 de agosto – Sábado - Hangar
O sábado começou no horário com a
banda Simetria Oposta oriunda do interior do estado, da cidade de Capanema.
Mesmo com alguma ideia boa aqui e ali, não conseguiu se sobressair. Músicos
muito novos, na maioria, e que ainda buscam o caminho correto para seguir.
Assim como a postura mais adequada.
Depois foi a vez do Molho Negro.
Uma das bandas mais festejadas do estado atualmente (com razão, diga-se) tocou
seu rock sem firulas para uma plateia ainda não tão grande, o que pouco
importou para a banda que fez uma apresentação poderosíssima. Faixas do álbum
novo se mesclavam com outras mais antigas e o resultado foi extremamente
proveitoso. João Lemos é um rockstar carismático, raivoso e parece possuído por
alguma entidade quando está em cima do palco. Se passar pela sua frente, não
hesite em assistir.
O Turbo de Camilo Royale e do
pequeno gigante baterista Netto veio logo após e continuou na mesma pegada do
Molho Negro. O zumbido nos ouvidos continuava. Veterano da cena local, Camilo é
outro que parece estar possuído em cima do palco. E isso rende momentos únicos
e bastante visuais. Com músicas do mais recente trabalho a ser lançado ainda
esse ano, foi outra banda a sair do palco cravando o sorriso no rosto de quem
viu.
Fábio Golfetti e a versão mais
recente do Violeta de Outono eram uma das apresentações mais esperadas dessa
edição, pode ter certeza disso. E eles não deixaram essa expectativa em vão.
Única banda a ter um bis liberado sem ser o show principal da noite, Fábio
parecia duvidar um pouco da recepção calorosa do público. E mesmo com uma leve
viagem mais longa na metade do espetáculo, foi coeso e emocionou em canções
como “Dia Eterno”, “Declínio de Maio”, “Outono” e na clássica versão de
“Tomorrow Never Knows”. O Violeta de Outono foi grande como deveria ser. E
ainda contou com Pio Lobato na guitarra nas últimas músicas.
Não reuni coragem para encarar o
Jaloo e com a mudança rápida na programação, o Pelv’s entrou no palco em
seguida. Clássica guitar band dos anos 90, os cariocas desembarcaram em Belém
com sete integrantes, o que às vezes proporcionava quatro guitarras tocando na
mesma canção. Não poderia se esperar da Pelv’s pulos acrobáticos e conversas
longas com o público. Não faz parte do show deles. Para eles, ensaiar e tocar é
praticamente a mesma coisa. O que importa são as melodias, os backing vocais,
as distorções, as microfonias. E no que tange a isso foi perfeito. Escutar
coisas como “Trippy” e “Sundried And Mellowed” são capazes de valer uma noite.
O El Mató a Un Polícia Motorizado
era outra daquele grupo de “bandas mais esperadas”, mas infelizmente devido a
questão do acesso complicado (ainda mais porque esperei o Pelv’s até o final)
vi bem de longe e só algumas faixas, então não dá para opinar muito. Os
argentinos ficam para uma próxima.
Já o trio americano do Bass Drum
Of Death subiu ao palco principal com duas guitarras e uma bateria. Barulho e
energia dos garotos, mas nada fora isso. Parecia a mesma música sendo executada
o tempo todo com pequenas variações de no máximo uns dez por cento. É
legalzinho, faz balançar a cabeça, mas fica nisso. Existem centenas de bandas
que fazem essa mistura melhor.
Felipe Cordeiro subia ao palco
para um provável ótimo show, mas se fazia necessário um descanso para encarar o
show do Arnaldo Antunes completo, que começou ali perto das três da manhã. Com
uma senhora banda lhe servindo de sustentáculo (Curumin, Betão Aguiar, Chico
Salem, André Lima e o guitarrista que veio no lugar do Edgard Scandurra),
Arnaldo entrou com o jogo ganho. A devoção estava presente no rosto de cada um
ali presente. E Arnaldo, como de costume, se doou ao máximo para esse público.
O show atual do artista baseado
no álbum “Disco” de 2013 é mais dançante, mais leve, mais propenso ao swing,
mesmo que em escalas tímidas na maioria das vezes (tanto é que Felipe Cordeiro
aparece para “Ela é Tarja Preta”). Bem diferente da turnê do “Iê Iê Iê” que a
cidade havia visto anteriormente. Arnaldo é assim, mutável. Porém, esse show
atual não é tão forte quanto aquele, apesar de músicas como “Trato” e “Dizem
(Quem Dera)” serem boas composições. Essa opção pelo suingue involuntário, pela
guitarrinha dedilhada com habitualidade, não funciona tão bem quanto a versão
mais pop ou mais rock do artista. O final com coisas como “Fora de Si”, “Vá
Trabalhar”, “Envelhecer” e “O Pulso”, por exemplo, é mais possante que boa
parte da apresentação. Não que tenha sido ruim, foi um bom show. Porém, só
isso.
E depois de assistir 23 shows,
faço duas pequenas listinhas do Festival:
Top 10 - Shows
1 - Gangrena Gasosa
2 - Violeta de Outono
3 - Nei Lisboa
4 - Molho Negro
5 - SILVA
6 - Orquestra Contemporânea de
Olinda
7 – Félix Robatto
8 – Pelv's
9 - Arnaldo Antunes
10 - Meio Amargo
Top 10 - Canções
1 - “Tomorrow Never Knows” –
Violeta de Outono
2 - “12 de Maio” - SILVA
3 - “Pra Você, Solidão” -
Aeroplano
4 - “Sundried And Mellowed” –
Pelv’s
5 - “Do Tamanho do Mundo” –
Antonio Novaes
6 - “Eu Era Pop” – Acabou La
Tequila
7 - “Quem Gosta de Iron Maiden
Também Gosta de KLB” – Gangrena Gasosa
8 - “ Baladas” – Nei Lisboa
9 - “ Envelhecer” – Arnaldo Antunes
10 - “Se Ela Não é Lésbica, Tem Namorado" - Molho Negro
Que venha 2015 e os dez anos de
festival.
Todas as fotos retiradas daqui: http://www.flickr.com/photos/serasgum
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