Na Constituição Federal do nosso estimado
país datada de 5 de outubro de 1988, logo no primeiro artigo lemos o seguinte: “A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito”. Sim, um “Estado Democrático de Direito”.
Dessa maneira, não é passível de concordância ou digna de legitimidade qualquer
ação que vá contra isso, por exemplo, qualquer ação que signifique censura
prévia de um livro, filme ou obra que se equivalha. Mas, infelizmente não é o
que se vê por aqui.
O caso mais famoso sobre esse
tipo de proibição foi o livro “Roberto Carlos em Detalhes”, lançado no final de
2006 pela Editora Planeta e com a circulação interditada no início de 2007 pelo
artista, fruto de uma audiência de conciliação na Barra Funda em São Paulo, com
peculiaridades que honrariam um quadro de filme do Monty Python. Coerção, quebra
de regras, adulteração de texto, juiz entregando cd’s de sua autoria para
Roberto Carlos, promotor e juiz batendo alegres fotos depois da decisão, os advogados
da editora acuados e esbanjando covardia. Pareceria cômico se não fosse
trágico.
Essas minúcias e pormenores do
processo agora são revelados pelo escritor Paulo Cesar de Araújo em “O Réu e O Rei”, com 526 páginas e edição
da Companhia Das Letras. Um livro profícuo que versa não somente sobre
jornalismo, como também se correlaciona com o atual cenário onde (nesse
momento) um projeto de lei que libera a publicação de biografias não autorizadas
foi aprovado pela Câmara dos Deputados e segue para o Senado Federal, e assim
se espera, para a sanção presidencial. Chega também depois do ridículo movimento
chamado “Procure Saber” idealizado no ano passado por Roberto Carlos e mais
alguns ícones da música nacional que visavam justamente essa proibição.
Em “O Réu e o Rei”, Paulo Cesar de Araújo dedica boa parte das páginas
para contar sua própria história, desde a saída do interior da Bahia até a
chegada ao Rio de Janeiro. Navega na paixão pelas músicas do Roberto Carlos
(quem leu o livro proibido percebe o tamanho dessa paixão) e pelo intenso projeto
de pesquisa que fez com nomes representativos como Chico Buarque (que geraria
um fato interessante depois), Caetano Veloso e Tom Jobim. Narra também seu
percurso até a publicação do ótimo “Eu Não Sou Cachorro, Não” de 2002 onde joga
luz sobre a produção sonora assim denominada de “brega” dos anos 70 e 80 e
resgata músicos como Odair José, entre outros tantos.
A peregrinação do autor para entrevistar
tantos artistas quanto conseguiu é envolvente, pois além de um atestado de perseverança
e crença nas ideias que nutria, apresenta também um país diferente, com uma indústria
fonográfica ainda forte e pulsante, mas que em contrapartida não tinha tanta
frescura para ter acesso a seus criadores, e onde os assessores ainda não eram estrelas
também. Outro ponto bem agradável do registro consiste no relacionamento que o
autor formou com João Gilberto, o crânio por trás da bossa nova que sempre se
demonstrou arredio e inacessível, mas que no livro exibe outros lados diversos
a esses.
Não obstante, o personagem
principal da obra é mesmo a pendenga judicial que envolve o livro de 2006.
Movimentos sujos e sórdidos permeiam as páginas, assim como posicionamentos
nada lisonjeiros para alguns dos envolvidos. O favorecimento fica límpido para
uma das partes no livro. O inciso IX do artigo 5º da nossa constituição que coloca:
“é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença”, passa longe de ser obedecido. É justo lembrar que nesse
mesmo artigo no inciso X temos: “são invioláveis
a intimidade, a vida privada, a honra a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Os incisos são conflitantes, mas tem o mesmo peso, o que não foi levado em
consideração de modo correto no litígio.
Não cabe aqui entrar profundamente
nos aspectos jurídicos que abrangem também, entre outros, o artigo 220 da mesma
Constituição Federal e o artigo 20 do Código Civil (justamente é este artigo
que o projeto de lei aprovado na câmara visa mudar), como também aspectos
gerais aos conceitos de infâmia, injúria e difamação. Paulo Cesar de Araújo
coordena de modo equânime as divergências de pensamento e teorias e isso
engrandece ainda mais o texto. Texto que em nenhum momento se opõe a reivindicações
na justiça sobre eventuais ofensas ou inverdades através de indenizações. Ninguém
quer autores desonestos no mercado, o que se discute é a proibição para
publicações do tipo. Antes de serem lidas, inclusive.
Em um país como o nosso que tanto
sofreu (e por tanto tempo) com cerceamento e repressão de obras culturais das
mais distintas espécies, o caso de Paulo Cesar Araújo tem um destaque maior,
mas é bom afirmar que são vários os casos de litígio desse nível existentes. E isso
tem que acabar. “O Réu e o Rei” é uma
demonstração precisa disso. Roberto Carlos, que sempre expôs a vida e os fatos
dela em revistas, jornais e tevê para benefício próprio, não é o melhor caso
para alegar invasão de privacidade, quando na absoluta maioria do texto esses
casos foram divulgados por ele mesmo.
Com suas manias e a obsessão dele
e do seu séquito pelo controle de tudo, o “Rei” parece realmente acreditar que
é dono desse título e merecedor de um tratamento de majestade em todas as
esferas, como bem afirmou certa vez o André Barcinski. É desprezível essa posição.
Ele deve se lembrar que este título que ostenta é apenas uma (cada vez menos justa)
homenagem pública as suas canções, canções que em boa parte exaltam atitudes
contrárias as ações despropositadas que exibe. Podemos apenas lamentar isso e
admirar obras sérias como a de Paulo Cesar de Araújo, baseadas em extenso
trabalho de pesquisa e que louva as melhores prerrogativas do bom jornalismo.
Leia. Sem falta.
Nota: 9,0
P.S: Existia um receio de que novamente Roberto Carlos
entraria com um processo de proibição sobre um livro de Paulo Cesar de Araújo.
No lançamento, mesmo novamente sem ler o texto, divulgou que mandaria para o
jurídico analisar. Com medo de nova repercussão negativa na imprensa e em seu
público, ou com finalmente a razão lhe tomando a cuca, o “Rei” afirmou nos
últimos dias que não fará isso. Espera-se que continue assim.
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