Era final de agosto de 2005
quando um furacão de alto nível (o maior das últimas quatro décadas) oriundo de
uma tempestade tropical, arrasou a cidade de New Orleans, no estado da Louisiana
nos Estados Unidos. Outras cidades de estados como o Mississipi, o Alabama e a Flórida
também foram afetadas, mas em nível menor se comparadas a New Orleans. O
Katrina (como foi chamado) foi devastador e carregou além de vidas e bens, a autoestima
dos habitantes da região.
Durante a tempestade e os dias
que seguiram, o que se viu foi uma sequência de erros inacreditáveis das
administrações públicas (principalmente do Presidente Bush), com abusos ocorrendo
tanto por parte da polícia quanto das gangues que se aproveitaram da desgraça.
Na reconstrução da cidade, mais absurdos na retomada das casas, nas relações
com as empresas de seguros e com a “Indústria do Desastre”, sempre atuante no
país com seus acordos e negociatas.
Focada nessa reconstrução é que foi
arquitetada “Treme”, série da HBO que
começou a ser exibida em 11 de abril de 2010 e foi finalizada agora em 29 de
dezembro de 2013, depois de quatro temporadas e 36 capítulos. Idealizada por
David Simon (da ótima “The Wire”), com a parceria de Eric Overmyer (roteirista de
várias séries como a própria “The Wire’”), “Treme”
historicamente se inicia alguns meses depois da passagem do furacão e termina
no Mardi Gras de 2009.
Um dos grandes berços do jazz e
reconhecida por sua música em geral e gastronomia, “Treme” aborda o drama de se erguer novamente sem esquecer esses
pontos e em todos os episódios a música exerce um papel fundamental, já
atracada no próprio nome, que representa um dos bairros mais musicais e
festeiros (e pobres) da cidade. Não obstante, alguns dos personagens principais
são músicos como os trompetistas Delmond Lambreaux (Rob Brown) e Antoine
Batiste (Wendell Pierce) e a violinista e cantora Annie Tee (Lucia Micarelli).
A culinária, outra característica
da região, é representada pela chef Janette Desautel (Kim Dickens de “Obrigado
Por Fumar”). Entre os vários polos de apresentação que ainda podemos recortar temos
a briga em manter as tradições culturais de Albert Lambreaux (Clarke Peters de “Person
Of Interest”), a busca pelos direitos civis contra a corrupção policial da
advogada Toni Bernette (Melissa Leo de “O Vencedor”) e do detetive Terry
Coulson (David Morse de “Guerra Ao Terror”) ou os negócios obscuros de
empreiteiros como Nelson Hidalgo (Jon Seda).
Amarrando despretensiosamente todas
essas pontas (ou a maioria delas) está o DJ Davis McAlary, personagem
interpretado por Steve Zahn de “Roubos e Trapaças”, um idealista, sonhador e
apaixonado pela cidade. John Goodman (de “Argo”), como um professor e marido de
Toni Bernette também é um grande papel, mas infelizmente só participa da
primeira temporada, o que é válido por outro lado pois abriu novas possibilidades
narrativas envolvendo tanto o crescimento pessoal quanto revoltas próprias.
Além de todos esses fatores,
quase sempre os episódios exibidos são exímios, tecnicamente falando. Diretores
como Tim Robbins (“Os Últimos Passos de Um Homem” de 1995), Agnieszka Holland
(“Filhos da Guerra” de 1990 e “O Jardim Secreto” de 1993) e Brad Anderson (“O
Operário” de 2004), são alguns dos nomes responsáveis. E a parte musical, bom,
a parte musical é puro deleite, pura satisfação. Trafegam nos capítulos
artistas como Elvis Costello, Allen Toussaint, Dr. John, Kermitt Ruffins,
Trombone Shorty, John Boutté, Steve Earle e Irma Thomas, entre tantos outros.
“Treme” alcança algo extremamente complicado que é unir bem várias
vertentes e muitos personagens fortes com real participação na trama, de modo
equilibrado. O drama junto com a comédia, a pesada crítica social com a
corrupção política, a música com o cotidiano, a dúvida com o entusiasmo, o
aprendizado com fracasso. E no meio disso tudo, como talvez a grande protagonista
de todo o enredo, a cidade em si, a terra de um povo, o chão de sonhos e
decepções que é New Orleans.
Mesmo com a quarta e última
temporada tendo apenas cinco episódios e acabando antes do idealizado, o final
não deixa muito a desejar e preserva o gabarito de qualidade visto durante as
temporadas. Poucas vezes uma série exibiu esse nível de qualidade de modo tão
constante. Depois de assisti-la é impossível não se apaixonar por New Orleans,
pelo seu povo, sua comida e sua música. É uma pena que “Treme” tenha chegado ao fim, mas assim como seus personagens
cansaram de mostrar, é preciso seguir em frente.
P.S: Também é uma pena que “Treme”
não tenha sido tão alardeada aqui no Brasil. Das quatro temporadas só a
primeira está disponível em DVD. Quem quiser assistir, ou acompanha pela HBO os
capítulos soltos em reprises (a espera de uma maratona) ou vai ao serviço online
“HBO GO”, onde tudo está disponível. Ou ainda, importa as temporadas. Acredite,
vale o esforço. Completamente.
Nota: 10,0
Abaixo, alguns momentos musicais
de “Treme”:
DJ Davis com “Shame, Shame, Shame”:
Irma Thomas, Allen Toussaint e Antoine Batiste
com “Time Is On My Side”:
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