Os anos 70 se despediam com cansaço e alguns sonhos partidos para que os anos 80 entrassem com alguma esperança e uma euforia meio perdida e sem grandes justificativas. O Brasil ainda atravessava o período final da ditadura e borrões de liberdade já eram vistos no horizonte. Nesse cenário, o paulista Ricardo de Mello consegue uma bolsa do governo para estudar economia em Paris e lá passa quase dois anos vagabundando pela cidade, sem saber ao certo que rumo tomar.
Ricardo é o personagem central de “Tanto Faz”, o primeiro livro do escritor Reinaldo Moraes, lançado originalmente em 1981 pela Editora Brasiliense. As suas aventuras tiveram continuidade em “Abacaxi”, que ganhou vida 4 anos depois pelas mãos da L&PM Editores. As duas obras recebem agora em 2011 uma justa publicação em formato pocket pela Companhia das Letras, na nova Coleção “Má Companhia” que também relançou “O Invasor” de Marçal Aquino.
Depois de 1985, Reinaldo Moraes só voltou a publicar em 2003 e teve que conviver com adjetivos nada nobres (não que ele se preocupe com isso) no decorrer da vida. O resgate dessas duas obras pela primeira vez juntas, é muito bem vindo. Quem não conhece o cotidiano repleto de sexo, drogas, palavrões e escatologia do autor, vai sentir o mesmo desconforto ou estranhamento inicial que quem leu nos anos 80. A escala pode até ser um pouco menor, mas ainda existirá.
Em “Tanto Faz”, o personagem desiste de frequentar o curso pelo qual está em Paris para se jogar em uma espiral de loucuras que não levam a nada. É um dândi estropiado, cheio de ideias absurdas e uma vontade insaciável por álcool, mulheres e substâncias ilegais. Ao seu lado convivem pessoas tão desprendidas quanto ele, embalados por uma trilha sonora que envolve mpb, jazz, bossa nova e rock. A história é diversa e fragmentada e traz inclusões de inglês e francês pelo meio.
São diversos os devaneios que o protagonista e pretenso escritor derruba no quarto ou pelas ruas da cidade luz. Entre umas e outras solta afirmações como “O que eu queria mesmo é uma literatura que fosse, como Torquato Neto, até a demência. E ficasse, como Chacal, entre o playground e o abismo. E tivesse a peraltice e o lirismo do Oswald. E tudo isso com o sabor coloquial do Mário de Andrade. Nem confissão, nem ficção. Conficção. Nem obra acabada, bem aberta. Obra à toa.”
Já em “Abacaxi”, quando os anos de Paris se esgotam, ele resolve passar ainda em Nova York e Rio de Janeiro antes de voltar para São Paulo e sua vida normal. E o que parecia quase impossível, acontece. Nessas duas cidades e em uma esfera pequena de tempo, as aventuras etílicas e químicas conseguem alcançar níveis maiores. Mais curto que “Tanto Faz”, “Abacaxi” é urgente e quase que imperdoável, pois não tem bom costume social que não derrube e arremesse diretamente na lama.
Hoje o trabalho de Reinaldo Moraes é mais respeitado, por mais que ainda tenha severas críticas pelas inclusões de palavrões e situações não muito lisonjeiras na escrita. Mas, assim como seus personagens que carregam muito de autobiográficos, isso não faz a menor diferença. Seus dois livros iniciais trazem na contramão de um imenso e catastrófico passeio pelo nada, uma reflexão involuntária sobre a real praticidade de atos, coisas e desejos. É insano, sujo, bem humorado e essencial.
Leia uma entrevista do autor no Scream & Yell, aqui.
Conheça um pouco mais da obra pelo teaser da Companhia das Letras: